Agora com a caneta na mão, o empossado Jair Bolsonaro não perdeu tempo e mostrou em pouco mais de 48 horas de seu (des)governo que promessas são, sim, dívidas e serão pagas aos fiadores; muita gente perde nessa correlação de forças

O Brasil deu posse ao seu 38º presidente da República. Jair Messias Bolsonaro (PSL) foi a estrela de um cerimonial que, apesar de o presidente ser quem é, é bonito e republicano quando acompanhado do sofá de casa e com a televisão no mudo. Saindo do campo subjetivo, da beleza ou não da cerimônia, os aspectos práticos que cercaram a posse foram os mesmos que permearam todo o processo eleitoral de outubro do ano passado: demagogia pura e em excesso.
Charge: Gilmar, o "Cartunista das Cavernas"
O agora presidente discursou por duas oportunidades. Na primeira, em sessão extraordinária no Congresso, Bolsonaro foi raso, muito nebuloso e abusou de lugares comuns. Com agradecimento a Deus pela reabilitação pós-atentado de setembro, o capitão da reserva, assim como em período de campanha, “convocou” os congressistas para “ajudarem na missão de restaurar e de reerguer nossa pátria” sem explicar do que se trata tal missão e quais ações serão empregadas para isso. 
Das duas uma: Bolsonaro não tem muito apreço pelo tempo e acha que o ano de 2005 foi ontem ou está com medo de uma eventual derrota ao convocar um novo referendo sobre desarmamento do desarmamento
Em outro momento, o presidente Bolsonaro falou em “enormes desafios”, novamente sem esclarecer quais seriam, e sugeriu que “se tivermos a sabedoria de ouvir a voz do povo, alcançaremos êxito em nossos objetivos, e, pelo exemplo e pelo trabalho, levaremos as futuras gerações a nos seguir nesta tarefa gloriosa”, em uma oração pouco autoexplicativa – a velha lorota. Dando continuidade ao discurso, o presidente disse que sua campanha eleitoral, envolvida em esquema de disparo ilegal de mensagens, “atendeu ao chamado das ruas e forjou o compromisso de colocar o Brasil acima de tudo e Deus acima de todos” e que, por isso, “quando os inimigos da pátria, da ordem e da liberdade tentaram pôr fim à minha vida, milhões de brasileiros foram às ruas”, em uma referência ao grupo que supostamente estaria com Adélio naquele dia 6 de setembro, como aponta o documentário amador “A Facada no Mito”, ou numa demonstração de maucaratismo, já que a Polícia Federal concluiu que Adélio Bispo agiu sozinho no atentado de Juiz de Fora. Não há “inimigos” no plural, presidente. No máximo há adversários políticos, como praxe de todas as democracias do mundo.
Imagem: Cartunista Claudio Mor
Mais adiante no 1º discurso, o presidente afirmou que “o cidadão de bem merece dispor de meios para se defender, respeitando o referendo de 2005, quando optou, nas urnas, pelo direito à legítima defesa”. Das duas uma: o presidente não tem muito apreço pelo tempo e acha que o ano de 2005 foi ontem ou está com medo de uma eventual derrota ao convocar um novo referendo sobre o tema. Pesquisa Datafolha, divulgada no dia 31/12, apontou que 61% dos brasileiros entrevistados são contra a posse de armas de fogo. Mesmo assim, Bolsonaro acredita que os votos dados à sua candidatura legitimam, inclusive, a edição de um decreto flexibilizando o Estatuto do Desarmamento. Não diferente de outros temas importantes para o desenvolvimento social do País, o posse ou porte de armas de fogo merece passar por debate sincero, transparente e aberto a todos. O mesmo vale para a questão do aborto e das mudanças na Previdência Social, por exemplo. Difícil acreditar que o grupo que assumiu o poder, cujo líder fugiu de debates e pouco expõe de suas ideias concretas, venha a promover isso.
Charge: Gilmar, o "Cartunista das Cavernas"
Antes de seguir para o parlatório, onde dirigiu-se aos 115 mil eleitores presentes nos jardins da Esplanada dos Ministérios (público maior que a 2ª posse de Dilma em 2015, quando 40 mil brasileiros estiveram no Distrito Federal, e menor que a de Lula em 2003, com 150 mil pessoas), Bolsonaro defendeu ainda o chamado excludente de ilicitude para as forças de segurança – desastre sem precedentes se não for discutido; a contrarreforma da Previdência Social, que exigirá muita resistência popular, já que a articulação da proposta, tanto com Temer como agora com Bolsonaro, envolve apenas representantes do sistema financeiro e empresários em detrimento das demandas de organizações civis; o livre mercado e sua pauta de privatizações indiscriminadas; e reforçou que os chefes de seus ministérios foram escolhidos “de forma técnica, sem o tradicional viés político que tornou o Estado ineficiente e corrupto”, quando 9 de seus 22 ministros estão sendo investigados por problemas administrativos ou corrupção, sendo alguns réus e condenados.
Difícil acreditar que o grupo que assumiu o poder, cujo líder fugiu de debates e pouco expõe de suas ideias concretas, venha a promover isso
No segundo discurso, o presidente jogou para a plateia, invocou o mito do socialismo, disse que a bandeira brasileira jamais será vermelha, faltando apenas fazer o sinal de arma com a mão. Já com a faixa presidencial, Bolsonaro deu o recado de que tudo o que falara, tanto ali no parlatório como na tribuna da Câmara, não passou de lorota e narrativa demagógica de uma pessoa ignorante com quase nenhum objetivo claro para além de ser mero porta-voz de um grupo de entreguistas e defensores de interesses escusos. Em resumo, o presidente jogou por terra todo o, em alguma medida, discurso ponderado feito aos congressistas e convidados.
Charge: Renato Machado
Muito se comentou sobre a “quebra de protocolo” da agora primeira-dama, Michelle Bolsonaro, apelidada de “Micheque Bolsonaro” em alusão ao cheque de 24 mil reais em seu nome no“Bolsogate”, ao discursar antes de o presidente Bolsonaro e por traduzir seu texto em Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. Antes, ainda quando da passagem da faixa presidencial, a primeira-dama pareceu fascinada pelos gestos do professor de LIBRAS que traduzia o hino nacional. Bom, o ato da agora primeira-dama chamou tanto a atenção que parte da mídia digital, incluídos alguns jornais impressos, realizou pesquisas sobre a relação entre Estado e a comunidade surda e os resultados não bons para Bolsonaro. 
A conjuntura concreta dos primeiros atos do presidente Jair Bolsonaro é como sequência piorada do (des)governo que se encerrou com Michel Temer, agora sem foro privilegiado, com a diferença primordial da legitimação do voto
Quis a ironia do destino que a Lei nº 12.319/2010, que regulamenta a profissão de tradutores e intérpretes de LIBRAS, fosse de autoria da deputada Maria do Rosário (PT-RS), com quem o agora presidente travou embates misóginos, e que a Leinº 13.146/2015, que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência, na qual os Bolsonaro, tanto o pai quanto o filho, votaram contra, também viesse à tona. Ao passo que Bolsonaro foi um deputado federal inexpressivo, sem projetos de lei e atividade parlamentar significativos, é mais que natural que ocorram situações como essas. O presidente tem vasta vida política no aspecto temporal e somente isso.

Avanços socioambientais em xeque

Empossado, Bolsonaro jantou macarronada no coquetel oferecido às comitivas estrangeiras no Palácio do Itamaraty, e editou decreto que reajustou o valor do salário mínimo de 954 reais para 998 reais. O valor ficou abaixo da estimativa orçamentária, em 1006 reais, mas dentro das regras de valorização do salário mínimo criadas pela ex-presidente Dilma Rousseff. E mais, a confusão entre o que foi previsto em orçamento e o decreto presidencial vem desde o ano retrasado, quando o então presidente-nosferatu Michel Temer reajustou o benefício em 17 reais, também abaixo do aprovado no Congresso Nacional e o menor em 24 anos.
Charge: Gilmar, o "Cartunista das Cavernas"
Na reorganização da estrutura dos ministérios o presidente esvaziou órgãos, como a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, que saiu do Ministério da Justiça e Segurança Pública, passou ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e agora deixou de ser responsável pela identificação, delimitação e demarcação de novas terras indígenas, prerrogativa que, por sua vez, agora está sob a alçada da ministra da agricultura, deputada Tereza Cristina (DEM-MS), presidente da Frente Parlamentar Agropecuária – FPA, de congressistas ruralistas ligados ao agronegócio, parte interessada no desmantelamento da luta indígena e de preservação ambiental; o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, órgão criado para regulamentar e demarcar terras de quilombolas, deixou de ser ligado diretamente à Presidência da República para também responder à pasta de Cristina; e o Sistema Florestal Brasileiro, com entre outras funções de recuperar e recompor a vegetação nativa e florestal, e fiscalizar parques e áreas de preservação nacionais, sai do Ministério do Meio Ambiente para a Agricultura.

No Ministério da Agricultura, com exceção do Sistema Florestal Brasileiro, tanto o INCRA como a responsabilidade de homologar os 129 processos de demarcação de novas terras indígenas – o que não deve ocorrer – devem ficar sob o comando do presidente da União Democrática Ruralista – UDR, pecuarista Luiz Antônio Nabhan Garcia, que será o secretário especial de assuntos fundiários. Garcia já fez declarações em defesa ao desmatamento da Amazônia e já teve de dar esclarecimentos à CPI no Congresso por porte ilegal de arma e contrabando, além de presidir uma organização que se especializa pelo lobby entre agropecuários e políticos simpáticos às cifras do agronegócio. No mais, Luiz Nabhan ainda defende a criminalização de movimentos sociais, como MTST e,principalmente, MST. O secretário fala em classificar tais grupos como terroristas.
Imagem: Cartunista Claudio Mor
A conjuntura concreta dos primeiros atos do presidente Jair Bolsonaro é como sequência piorada do (des)governo que se encerrou com Michel Temer, agora sem foro privilegiado, com a diferença primordial da legitimação do voto. A maior parte dos brasileiros que foram às urnas aprovou e talvez ainda aprove isso.

O ministro da educação, colombiano Ricardo Vélez Rodriguez, também aproveitou para colocar em prática a plataforma vencedora em outubro passado. Na Medida Provisória de reorganização do Ministério da Educação, Rodriguez extinguiu a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – Secadi, que incluía a promoção da educação para portadores de deficiência – lembre-se dos surdos “homenageados” pela demagogia da posse –, e criou uma subpasta de alfabetização para ocupar um afilhado do guru bolsonarista Olavo de Carvalho.

Na pasta da pastora Damares Alves, a comunidade LGBT do país que mais mata homossexuais no mundo foi retirada nominalmente das diretrizes de Direitos Humanos do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. "Neste governo, menina será princesa e menino será príncipe. Ninguém vai nos impedir de chamar nossas meninas de princesa e nossos meninos de príncipe", afirmou.

Primeiros atos concretos

Observa-se uma atenção especial do novo governo ao agronegócio e isso tende a gerar crise de ciúmes em outro grupo de sustentação: o empresariado que terá de articular melhor para não perder as políticas de subsídios, por exemplo.

O ministro da economia, Paulo Guedes, parece ávido a acabar com quaisquer incentivos à indústria brasileira de maneira que precise mexer com o sistema financeiro, onde fez fama.
  
Jornalistas à luta... para além das redes sociais

Ainda nos bastidores da posse, jornalistas que cobriam o evento reclamaram da hospitalidade bolsonarista.

Com pouca (quase nenhuma) efetividade, integrantes da imprensa brasileira que cobriam o evento denunciaram o tratamento de cerceamento ao direito de ir e vir, que, segundo eles, havia em cerimônias passadas, em seus perfis pessoais nas redes sociais e apenas um artigo sobre o assunto contendente foi publicado pela chamada mídia tradicional.
O silêncio não combina com uma profissão importante para o princípio da transparência da estrutura de governo e desenvolvimento de qualquer sociedade

Bom, espera-se mais de uma classe que, nem sequer, é regulamentada. Atos como ter abandonado a cobertura da posse, como o fez alguns correspondentes internacionais presentes, e organizar grupos de luta classista parecem ser o caminho.
Charge: Carol Andrade, "Barbie Cospe Fogo"
Lidar calada com perdas políticas de classe mais que significativas, como, por exemplo, o diploma dispensável, faixas salariais miseráveis e enfraquecimento das forças, com a pejotização dos profissionais, não combina com uma profissão importante para o princípio da transparência da estrutura de governo e desenvolvimento de qualquer sociedade.

O (des)governo de Jair Bolsonaro está apenas começando e a oposição legítima e democrática tem de apresentar-se organizada o suficiente para apontar propostas e medidas que vão de encontro aos interesses genuinamente populares. Há sim a necessidade de acompanhar os desdobramentos deste período que promete retroceder no tempo e deixar o País ainda mais distante da modernidade e desenvolvimento.

Clique aqui para assistir a 1ª edição do programa Redação JC, com análise dos primeiros dias de (des)governo Bolsonaro.

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Claudio Porto

Jornalista independente.

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