O presidente-nosferatu depende, e muito, do presidente eleito para não ter um final melancólico

O presidente-nosferatu Michel Temer está preocupado. Melhor, está como na charge do cartunista Renato Machado (reproduzida mais abaixo): com um “tic tac” que o atormenta nos pouco mais de 30 dias do fim de seu (des)governo. Ele sabe que a sua corrida individual tem como linha de chegada qualquer lugar – entenda-se como cargo – que mantenha seu foro privilegiado. E não poderia ser diferente tratando-se do primeiro presidente da história denunciado, estando no cargo, por crimes de corrupção passiva, obstrução à Justiça e organização criminosa. Na falta de uma denúncia, a Câmara arquivou, com transmissão ao vivo e na íntegra da “emissora que fala com mais de 100 milhões de uns”, dois pedidos de investigação.
Imagem: Charge de Renato Aroeira
Recaí ainda sobre Temer investigações avançadas a respeito do esquema de favorecimento a empresas que administram os portos de Santos e São Sebastião, em São Paulo. Moradores daquela região dizem saber há tempos do vínculo mantido entre o presidente e as administradoras. Alguns dos personagens, inclusive, já foram presos pela Polícia Federal. Há quem diga que, em sendo verdadeira a máxima de que “tucano” nunca será preso – exceção feita ao mineiro Azeredo, já que Aécio por ser Neves e não Naves garante sua liberdade –, a prisão de Michel Temer fecharia o ciclo de prisões a políticos, em um período marcado pelo sentimento vão do “passar o Brasil a limpo”. 

Não por acaso, o presidente-nosferatu se agarrou a Bolsonaro. A aproximação foi de tal maneira que, para os menos atentos, Temer passa a imagem de que integra o núcleo bolsonarista, que ganhou as eleições e experimenta a sensação de estar próximo do poder pela primeira vez, há muito tempo. Como alguém que quer alguma coisa, Temer recomendou à Secretaria de Comunicação da Presidência da República e os respectivos departamentos de comunicação dos ministérios, alguns ameaçados de extinção, que não façam críticas ao governo Bolsonaro.
Charge: Renato Machado
De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, que deu a notícia, o presidente-nosferatu teria dito que “não cabe à atual gestão falar sobre um governo eleito pelo povo”. Das duas uma: Temer, de dois para cá e após ter conspirado contra a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), tomou consciência de que a escolha da maioria tem de ser respeitada sob todas as circunstâncias ou confirma que está preocupado com a autopreservação.

Ao impor uma mordaça aos ministérios, Temer busca agradar aquele que pode ser sua única salvação a partir de janeiro próximo, já que o lado tucano da força política, outro refúgio natural, não aprovou em nada a versão youtuber do presidente durante a campanha eleitoral. Aliás, à época Bolsonaro não foi alvo de críticas.
Imagem: Charge de Renato Aroeira
Não se trata apenas de cooperação por conta da transição de governo. Se assim o fosse, Temer não aceitaria calado as confusões irremediáveis que o presidente eleito e sua trupe têm causado ao atual (des)governo.  De Aloysio Nunes, ministro das Relações Exteriores que teve reunião com empresários brasileiros e o governo egípcio cancelada por conta dos comentários sobre mudar a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, passando pela indicação de fusão dos ministérios da Agricultura e Meio Ambiente e extinção do Ministério do Trabalho e Emprego, à retirada, pelo governo de Cuba, de médicos cubanos do programa de assistência médica da família Mais Médicos, todos os atos do ainda não empossado Jair Bolsonaro geraria ao menos uma irritação mínima, o que não foi observado em Temer até a edição deste artigo.

Ao contrário, Michel Temer parece estar tranquilo com as escolhas de Bolsonaro. É como a continuidade de sua plataforma, a tal “ponte para o futuro”, com a diferença básica do princípio da legitimidade: a maioria dos brasileiros que foram às urnas escolheu Bolsonaro como representante máximo.

Tiro no escuro?

Além de ter sido o primeiro – e por enquanto o único – presidente estando no cargo denunciado por crimes comuns, Michel Temer é também o que ostenta os menores índices de aprovação na história. A maior parte da opinião pública se colocava contra o presidente-nosferatu por conta de sua agenda de desmonte de direitos e economicamente desastrosa – alta taxa de desemprego e políticas como a de reajuste de combustíveis pela Petrobras. Porém, os resultados das urnas trouxeram Bolsonaro e com ele a mesma agenda neoliberal.
Os primeiros sinais de Bolsonaro abusam da intelectualidade média e levam a efeitos práticos
O Brasil a ser comandado por Jair Bolsonaro se prepara para ter ainda mais ideologia em suas decisões. O “ainda mais” é porque toda atividade política carrega seu conjunto de ideias e, não diferente, no período em que o país foi governo por petistas muitas das escolhas foram tomadas a partir de conveniências ideológicas – algumas boas e exitosas e outras nem tanto.

Os primeiros sinais de Bolsonaro abusam da intelectualidade média e levam a efeitos práticos. No mais recente dos casos, o bolsonarismo tem se colocado como baluarte da defesa à liberdade e do combate ao que considera ser trabalho análogo à escravidão de médicos cubanos que prestam serviços ao programa Mais Médicos, criado em 2013 pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) como mecanismo contra o déficit de profissionais em todas as regiões do País, sobretudo nas mais remotas, carentes e tribos indígenas.
Imagem: Quadrinsta (@quadrinsta no Instagram e Twitter)
A suposta preocupação surge porque os médicos formados na ilha não recebem 100% da bolsa de R$ 11.865,60 paga aos médicos do programa.  Os cubanos que participam do Mais Médicos ficam com 30% desse valor enquanto os outros 70% são destinados ao governo de Cuba. Em contrapartida, os profissionais são formados em medicina pelo próprio Estado, que oferece gratuitamente o curso, e têm moradia e alimentação custeadas pela prefeitura da cidade em que presta os serviços.
Em campanha Bolsonaro falava em técnicos para os ministérios e decisões pragmáticas. Se já na transição os movimentos vão à contramão das promessas, imagina só assumindo o governo
Considerando tais pontos, previstos no acordo fechado entre Brasil e a Organização Pan-Americana da Saúde – OPAS, que intermediou a vinda dos médicos cubanos, o profissional da ilha inscrito no programa recebe mensalmente 3 mil reais líquidos, o que o coloca em situação confortável quando comparado à renda média dos brasileiros. O jornalista Gilberto Dimenstein, do portal Catraca Livre, diz que “para a maioria dos brasileiros, ‘escravo’ cubano tem vida de rei’”.

O presidente eleito sempre se colocou contra o programa, especificamente contra os cubanos. Vídeos de Bolsonaro fazendo comentários xenófobos contra os profissionais e suas famílias, inclusive questionando a formação acadêmica cubana, não faltam nas redes. Tudo isso porque diz não compactuar com o regime político de Cuba. Ora, em campanha Bolsonaro falava em técnicos para os ministérios e decisões pragmáticas. Se já na transição os movimentos vão à contramão das promessas, imagina só assumindo o governo. Bolsonaro dá um banho de água fria antecipado nas expectativas – de quem as mantinha.

Charge: Carol Andrade, "Barbie Cospe Fogo"
Na prática, 8.332 médicos cubanos estão de saída do País – o programa tem 18.240 vagas –, com impacto direto na saúde pública de 28 milhões de brasileiros, segundo a Confederação Nacional dos Municípios – CNM. De acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena – SESAI, que oferece acompanhamento básico de saúde a tribos indígenas espalhadas por 19 estados, 301 dos 372 médicos são cubanos e devem deixar o Brasil até o final do ano.

Como dito em editorial anterior, “Bolsonaro é tão ponto fora da curva que o velho ditado ‘quem não te conhece que te compre’ não tem muita relevância em sua vitória”. E é mesmo. A maior parte daqueles que não aprovam Temer escolheram o capitão da reserva sabendo de quem se trata, o conhecendo bem.
Charge: Renato Machado
O fato de Bolsonaro não ter sido empossado, não deveria eximi-lo das críticas. Ao contrário, é preciso apontar que suas escolhas sustentam, como pano de fundo, os mesmos interesses de sempre e são capazes de gerar consequências imediatas. Exemplo concreto disso é o agravamento da saúde pública com a saída dos cubanos e os ministros que podem até serem técnicos, mas não carregam nada de novo ou diferente daquilo com o que a política está acostumada.

Tereza Cristina (DEM-MS), à frente da pasta da Agricultura, continuará seguindo a cartilha do agronegócio como sempre foi feito; Sérgio Moro cumprirá a missão de ser o para-raios do governo; Paulo Guedes e seus “Chicago Boys”, como ficou conhecido o grupo de economistas que deram o alicerce econômico da ditadura chilena de Augusto Pinochet, segue na defesa dos interesses dos bancos e do alto empresariado; Marcos Pontes, apesar de ser da área científica, quer ter o ensino superior sob sua alçada como barganha em negociações com empresas de pesquisas e de ensino à distância; e Fernando Azevedo e Silva e Augusto Heleno representam a casta militar que vive de pensão. Somente o mais novo escolhido entre os futuros ministros defenderá algo novo na esplanada: Ernesto Araújo, futuro ministro de Relações Exteriores, tem a missão de levar a “bolsosfera” – termo de Leandro Demori, do portal The Intercept Brasil, com suas teorias conspiratórias e maluquices irrestritas, para o governo Bolsonaro.
Imagem: Charge de Renato Aroeira
A conivência de Michel Temer, enquanto presidente do Brasil que assiste sem demonstrar reação o despreparado Jair Bolsonaro tomar decisões desastrosas, só se mantém pelo o que este artigo se propôs a abordar: por um final menos melancólico,Temer depende, e muito, do presidente eleito.

A lamentar que milhões de brasileiros, já sem emprego e com pouca esperança, tenham de pagar o preço das alianças de bastidores.

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Claudio Porto

Jornalista independente.

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