Parece surreal… há alguns dias, mais um trágico acontecimento tomou as redes sociais e os noticiários de nossa distópica nação: o estupro de uma menina de 10 anos [1].


O acontecimento, e aqui me repito, trágico, dividiu, em uma disputa campal, as opiniões novamente. Tivemos (na já instituída dicotomia “nós” e “eles”) os que eram contra o direito de terminar com a gestação e os que apoiaram a decisão jurídica, defendendo, assim, a vida da menina de 10 anos. Uma disputa que está inserida numa realidade cultural que tem como base aspectos morais religiosos tradicionais da formação colonial de matriz religiosa cristã, aspectos estes que deveriam ou pareciam estar superados pelo desenvolvimento científico, econômico e social.

Absurdo? Não para um contexto, distópico, que se agudiza cada vez mais.

As “novas vozes” (nem tão novas) que se projetaram nas ruas e nas redes sociais, desde os eventos de 2013 e, de forma mais intensa, no momento de ruptura que ocorreu com o impedimento da Presidenta Dilma Rousseff, em 2016 (lembrando que fomentado por um parlamentar que se posicionava mais ao centro, decepcionado por não conseguir apresentar um projeto de Governo que convencesse e vencesse o pleito eleitoral, Aécio Neves), tentam imprimir uma perspectiva que nega aspectos humanos, que ganharam notoriedade no pós-guerra e que se aproximavam de políticas com caráter liberal, em que a defesa da vida seria a principal política, levando em consideração o terrível evento do antissemitismo, numa tentativa de que algo dessa proporção não se repetisse mais.

Quando lembro do primeiro artigo da Declaração dos Direitos Humanos, que nos fala que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos [...] são dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” [2], questiono para onde foi o “espírito fraternal” destes (ditos) religiosos (espírito este que foi enfatizado pelo messias cristão, de amar o próximo como a si mesmo). E, mais ainda, neste caso, tratando-se de uma grave violação, em que a vida de um sujeito que, por sua idade, é considerado um incapaz e deveria ser tutorado pela família, pela sociedade civil ou pelo Estado [3].

Desta forma, poderíamos pensar que o Humanismo está em declínio, como nos sugere Achile Mbembe [4]?

Será que o projeto iluminista, que tinha como perspectiva libertar o homem de amarras históricas como “preconceitos religiosos, sociais e morais” [5], talvez não tenha alcançado seu objetivo, e algumas sobrevivências ainda assombrem nosso imaginário social?

A questão religiosa vem avançando no campo político após a abertura democrática de forma expressiva. A realidade de padres e pastores assumindo cargos eletivos não é uma característica do atual período “democrático”, mas temos hoje uma maior incidência de políticos que se apresentam com um título religioso [6] – a exemplo, hoje, da cidade do Rio de Janeiro, que tem um prefeito que se diz bispo de uma das correntes neopentecostais. Lembrando aqui que este avanço representa uma parcela da população, e, desta forma, representando um projeto.

Em nossa Constituição, a matéria da religião é de responsabilidade do privado, a garantia de liberdade de culto está garantida pelo artigo quinto. Entretanto, as relíquias religiosas aparecem não só nos tribunais, escolas, prefeituras, mas também no discurso dos agentes públicos.

O que a religião representa para aqueles que nasceram e foram iniciados em algum culto, já sabemos, mas e as reais intenções dos dirigentes das instituições religiosas, quais seriam?

O campo da política é um lugar movediço, as muitas possibilidades que nos foram ofertadas no decorrer da História parecem se repetir ou insistir em permanecer, e, em nossa “Terra Papagalli” [7], a “procissão lomba a baixo” [8] parece continuar evocando seus odes a Deus. Instigado na fala de Brizola, pergunto-me: o que estes religiosos querem? Uma teocracia neopentecostal?

*Texto revisado por Adriana Alaíde Sühnel dos Santos

Referências

[1] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/08/15/menina-de-dez-anos-engravida-apos-ser-estuprada-no-espirito-santo.ghtml

[2] Declaração Universal dos Direitos Humanos (p. 4): <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf>

[3] Constituição da República Federativa do Brasil (compilado até a Emenda Constitucional nº 101/2019), Art. 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, (p. 65).

[4] MBEMBE, Achile A Éra do Humanismo Está Terminando https://www.pensarcontemporaneo.com/humanismo-mbembe/?fbclid=IwAR2BhRuDFzx6tMk7OB-23ezzG96jPHbSGehxtthFCaSvARO-bAI6kEinxpY

[5] CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. Ática, 2012 (p. 60).

[6] Mais de 500 candidatos usam títulos religiosos no nome de urna https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/08/20/mais-de-500-candidatos-usam-titulos-religiosos-no-nome-de-urna.ghtml

[7] TORERO, José Roberto; PIMENTA, Marcus Aurelius. Terra papagalli. Alfaguara, 2013.

[8] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. São Paulo: Brasiliense, 2000.

Sobre a Coluna

A coluna Muros ou Horizontes é publicada quinzenalmente.
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Manoel Rodrigues

Graduado em Ciências Sociais Bacharelado pela PUCRS; Graduando em Ciências Sociais Licenciatura pela UFRGS; Trabalhador de base dos Correios (ECT).

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