Eu Não Acredito em Crimes[1]


Me lembro como se fosse hoje da época em que assistíamos, em rede nacional, a República ser desmantelada por uma operação político-policial maquiavélica[2], cujo nome, no final das contas, vinha bem a calhar: "lava jato". Aos que não estão familiarizados com o termo, este mecanismo de lavagem automotiva, que serviu a batizar a aludida opera(cionaliza)ção, consiste basicamente num instrumento de "higienização rápida" e, destarte, superficial do automóvel, para fins de que se dê, ao mesmo, um aspecto apenas aparente de limpeza, reservado a situações emergenciais e que, portanto, não sobrevive a análises mais rigorosas - momentos estes em que se observa, na verdade, que o sistema deixou uma série de avarias no veículo, sobretudo em razão de a limpeza ter sido tão "express" assim (em suma: "express" no c***** dos outros é refresco! - eu quis dizer carro... não pensem besteira!).



Me lembro, igualmente, desta mesma época, o quanto nos sentíamos sozinhos, nós, os lúcidos, quando víamos tudo isso acontecer sem que as instituições democráticas reagissem. Vimos a República na UTI quando tudo valia em prol de um "objetivo maior" - maior e tão grande que nem mesmo se sabia mais o que era. Combate à corrupção, diziam "Minions" e "Moroguetes". Me recordo, contudo, também, do quanto nós nos mantínhamos firmes ao lhes responder que "os fins jamais justificariam os meios", e que, ao revés, num Estado Constitucional, onde vigem princípios como o da presunção de inocência[3] e do devido processo legal[4], são justamente os meios que afiguram-se capazes de materializar, corporificar os fins e/ou mesmo os hipotéticos inimigos de combate.


            

Com efeito... moralismos ensandecidos à parte[5], numa democracia constitucional[6], só é culpado quem assim for considerado, por sujeito competente para tal[7], após condenação com trânsito em julgado[8], por meio de processo legalmente determinado[9], onde se preservem todas as suas garantias, processuais e constitucionais. Ora, pois... se culpado é apenas quem for julgado e sentenciado enquanto tal, como combatê-lo judiciariamente, se a culpa, que assim o caracteriza, só passa a existir, processualmente falando, após o término do próprio processo judicial? Sem processo, não há culpados. Há só inocentes - mesmo que apenas presumidamente. E aí vem a pergunta: se não há culpados até o fim do processo, não há inimigos a se combater até lá, pois não? Não por outra razão, a conversa de "combate à corrupção" sempre vem acompanhada de uma série de negações de direitos fundamentais que afetam a todos os cidadãos... enfim.

Prossigamos.


Nos anos que antecedem ao presente, testemunhamos horrorizados o candidato com maior intenção de votos ser preso sem crimes, numa completa e flagrante fraude eleitoral...[10] e depois assistimos o reprise de tudo isso com o Intercept, nos fazendo recordar todo o desastre - e com cenas extras, onde se mostrou, inclusive, o que rolava "por detrás das câmeras" (e/ou das câmaras, por que não?). Impotentes, sim. Sentimo-nos sem poder fazer nada. Triste. Muito triste, sem dúvidas! Nada poderia nos acalentar naquele instante, senão apenas a certeza de que ao menos o básico não poderiam nos tirar: o conhecimento e a integridade moral![11]

Boécio (460 - 524 d.C) no cárcere enquanto recebe as belas lições (e consolações) da Deusa Filosofia.
Fonte da imagem: <http://caminhadafilosofica.com/filosofia-e-religiao/resenhas/boecio/a-consolacao-da-filosofia.html>


Motivados, pois, em razão de nos ter remanescido, ainda, o que, paradoxalmente ou não, nos era mais valioso, bradamos, orgulhosos: "Estamos do lado certo da história"! "A história não perdoará", dizíamos. E assim, permitíamo-nos dormir tranquilos, de consciência limpa e com a esperança por um amanhã melhor. Estou certo?


Pois eis que uma notícia de última hora, no entanto, me chega neste instante: o amanhã de ontem é hoje! E é aqui que eu quero efetivamente conversar um pouco com vocês.

"À esquerda o homem representa Boécio, esperando pela execução, quando em "sonho" surge a mulher segurando um livro em uma mão e na outra um cetro. Essa mulher é a Filosofia, que vem consolá-lo, iluminá-lo, libertá-lo. À direita, a Roda da Fortuna e a sua natureza de fazer subir o que está abaixo e de descer o que está acima."
Fonte: <http://tiagoav.blogspot.com/2015/02/a-consolacao-da-filosofia-boecio.html>


Ainda no ano passado, mais precisamente em 14 de maio de 2019, foi instaurado um inquérito pelo Ministro Dias Toffoli[12], por meio da portaria 69[13], onde se visava (e ainda se visa, pois está em plena atividade) apurar notícias falsas (Fake News) perpetradas em desfavor dos Exmos. Ministros do STF. Nela não há fatos específicos narrados. Ao contrário. Fala-se genericamente sobre "fakenews", calúnias, injurias e difamações que, em tese, atentariam contra o decoro e a segurança dos ministros. Só ler lá para verificar.


Sobre este fato, bem... não sou penalista, mas, em meu entender, quando se diz que o inquérito requer a descrição do fato[14], tem de ser ainda mais concreto, ou seja, algo como "tal fato específico, que ocorreu no dia tal, lugar tal, etc". Caso contrário, vira Estado Policial!!


Pensem: não há fato preciso descrito no inquérito. Assim, na prática, está todo mundo sob investigação! Pois veja: se eu não tenho um fato específico pra poder dizer que não fui eu e que, portanto, nada tenho a ver com ele, então como posso me defender acaso a PF queira invadir a minha casa amanhã e pegar o meu computador, por exemplo???


Pois sem fato objetivo discriminado, estamos todos sub judice, e aí, adeus Estado Constitucional. Compreendem?


Sigo.


O fato descrito no inquérito tem de ser típico, mas "Fake news" não é fato típico, infelizmente[15] - a menos que incuta em lesão à honra.[16]



Outrossim, vivemos em um Estado Constitucional, onde vigem primados como a separação dos poderes[17], onde, em tese, e de maneira didática, podemos dizer algo como: ressalvadas raríssimas exceções, o executivo executa, o judiciário julga, o legislativo legisla e as polícias, subordinadas ao primeiro, investigam. Neste sentido, o Art. 43 do Regimento Interno do STF[18] clara e expressamente limita a iniciativa do STF para abrir inquéritos (atividade investigativa, de natureza policial e não judiciária) APENAS quando os crimes que se visa investigar forem praticados nas dependências do Supremo Tribunal Federal, possivelmente naqueles casos em que as partes e/ou procuradores se exaltam, por exemplo.[19] Está lá. Vivemos na "Era da Informação". É só buscar e ler. [20]


Assim, Fake News eventualmente injuriosas, caluniosas ou difamatórias (que constam na portaria 69) não podem ser objeto de inquérito instaurado pelo STF, bem como ofensas pessoais aos ministros também não são de iniciativa do STF investigar, se não houverem sido praticadas dentro do Tribunal.[21]


Ademais, Toffoli nomeou arbitrariamente o julgador, no caso, o Alexandre Morais. Algo profundamente incompreensível! Observem: vou entrar com uma ação judicial, mas quero que seja julgada por um juiz de minha escolha, ok? Grande sonho de nós advogados, pois não?

NÃO! Seria ilegal, inconstitucional e injusto!

Pois bem... no caso deste inquérito é exatamente o que ocorreu!!!


Sabe... isso é tão óbvio que as vezes eu acho que estou falando outra língua. Já ouvi por aí que a emoção tem de ser separada da razão. Bem... abstraindo-se questões filosóficas que demonstram que isso talvez não seja tão possível, o fato é: Bolsonaro é o Lula de hoje. Logo, muito embora ele não esteja sendo diretamente investiGADO, nós não podemos aceitar ativismo ilegal e inconstitucional, seja contra quem for, só porque prejudica o "time adversário", estou certo?


Pois camaradas que concordavam plenamente comigo quando eu dizia que os fins não justificavam os meios ao interpretarmos as decisões do Moro, agora aplaudem e avalizam o ativismo do STF.[22]


Eu me pergunto: de que lado vocês estão? Do egoísmo e dos interesses próprios ou da Democracia e da Constituição?


Quando criticamos algum político, criticamos ele por que? Porque ele está do outro lado ou porque ele está errado em fazer o que faz? Pois se dizemos que o mesmo está errado, devemos pressupor, antes, um padrão pré-estabelecido e universal de condutas, segundo as quais possamos obrigar o seu cumprimento, e por meio das quais possamos julgar as atitudes dos demais, como certas ou erradas, conforme os seus ditames. E este sistema são as leis a Constituição! Sem ela, não estamos certos, nem errados, estamos perdendo!


Pensemos: se não há parâmetros a serem respeitados por todos, então não podemos criticar os nossos opositores, devemo-lhes os parabéns!


Não há equívocos sem um aparato normativo universal que o deslegitime. Assim, sem regras válidas para todos, não possuímos legitimidade para exigir seu cumprimento perante terceiros, bem como tampouco podemos criticar quem age contrariamente aos seus ditames. Não há certos e errados se não há certo nem errado. Há apenas vencedores e perdedores e, neste cenário, sinto em lhes informar, mas estamos do lado de cá.


Prossigo mais uma vez.


Particularmente não creio que estejamos dispostos a aceitar tais implicações, correto?



Pois bem, meus amigos... então chegou a hora de lhes dizer: política não é futebol (embora o futebol tenha se demonstrado brilhantemente político nos últimos instantes). Logo, parem de torcer pelas pessoas e passem a respeitar o Estado de Direito! Sem ele não tem "jogo", meus amigos! Sem ele é barbárie!


E o pior de tudo é que, neste caso específico, o próprio Estado de Direito já nos fornece meios lícitos a depor este asno que está na presidência! IMPEACHMENT, por exemplo!


"Ah, mas o Maia está 'sentado' no processo." Pois cassem o mandato dele por abuso de poder então! (art. 55 CF)[23].


Tudo, menos dar razão para essa cambada aí e inclusive fundamentar intervenções!


Repito: não precisamos disso!!!


Deixemos as paixões e resolvamos tudo dentro da lei. Não seja igual àquele cara que você criticou quando ele apoiava o Moro no "combate à corrupção"! Nenhuma causa vale mais que a Constituição. Ela é a causa das causas. Sem ela, não há causa, há caos!



Abraços e até a próxima!

Sobre a coluna

A coluna Homo Juris é publicada sempre às quartas-feiras.


[1]Eu não acredito em crimes. Tanto quanto em Papai Noel, Coelhinho da Páscoa e etc. Para me fazer crer, tens que me provar. 😉
[2]Falo em "Maquiavelismo", mas, na verdade, Maquiavel nunca disse algo como "os fins justificam os meios". A  frase é, contudo, costumeiramente atribuída a ele, quiçá por ter sido o mesmo a redigir o livro "O Príncipe" enquanto manual de recomendações a um governo (principado) que desejasse se manter no poder. O recado de Maquiavel deve ser lido sempre da seguinte forma: se quiseres manter e perpetuar o poder, então deves.... Lá se vê coisas de cunho estratégico, para fins de se garantir a manutenção duradoura do governo.  À título de exemplo, para o autor, o governante que desejasse manter seu poder, deveria atentar a dois principais requisitos, quais sejam, a virtú e a fortuna. A primeira consubstancia-se justamente nas qualidades subjetivas do governante que denotem a sua boa capacidade em governar. Apenas virtú, todavia, não seria suficiente para a conquista e boa governança de um principado, devendo o mesmo, ao revés, atentar e se precaver aos fenômenos “fortuitos” (leia-se, aleatórios, inesperados, largados à sorte, como os naturais, por exemplo), haja vista que, como destaca, a fortuna se assemelha a “um desses rios ruinosos que, quando se irritam, alagam as planícies, arrasam as árvores e os edifícios, levam terra deste lado, põem-na naquele...”. É essa a verdadeira mensagem de Maquiavel, e não outra. Maquiavel, Nicolau, O Príncipe, edição bilíngue, tradução e notas de Diogo Pires Aurélio, 1ª edição, São Paulo: Editora 34, 2017, p. 241 e 242  
[3]Assim versa o art. 5º, LVII da CRFB: - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. A devida interpretação deste dispositivo não é plenamente pacífica (embora devesse ser). Dado que nossa Constituição vigente foi promulgada logo após longo período ditatorial, quis ela afastar todo e qualquer resquício de autoritarismo. Uma modificação tão profunda na consciência geral da nação não poderia, contudo, realizar-se de maneira tão imediata. Envolve uma constante e diária reconstrução da moralidade pública, de sorte a que somente assim abandone-se ideologias de cunho punitivista e/ou autoritário. Não por outra razão, o mencionado dispositivo, constante na Constituição Federal desde a sua promulgação, em 1988, somente passou a ser compreendido como verdadeiro óbice de se prender alguém antes do trânsito em julgado no ano de 2009 (lê-se: vinte e um anos após sua promulgação), quando da apreciação do aludido dispositivo pelo STF (HC 84.078/MG), onde finalmente se garantiu o óbvio: a presunção de inocência deve também impedir a prisão - ressalvadas as hipóteses de flagrante delito, ou preventivas. Todavia, a interpretação sofreu algumas alterações ao longo dos últimos anos. Em 2016, testemunhamos nova alteração (HC 126.292/SP), onde passou-se novamente a compreender-se o absurdo de que a Constituição vedaria tão somente que se considere culpado o réu antes do trânsito em julgado, mas que nada diz e, portanto, não impede que o mesmo possa ser preso antes do trânsito. Em suma... um malabarismo interpretativo para se manter um antigo ânimo autoritário em solo nacional. Por sorte, a aludida interpretação fora novamente modificada, em apertada maioria (6 x 5) pelo STF em 2019, quando do julgamento conjunto das ADCs 43, 44 e 54, onde passou-se a se compreender, uma vez mais, que, com efeito, se a CF proíbe que se considere culpados os réus antes do Trânsito em Julgado, seria absurdo concluirmos que o réu ainda assim pudesse ser preso, mesmo antes deste instante processual. Vale ainda mencionar que não apenas a Constituição veda a culpabilização antes do aludido trânsito, como Lei Federal (12.403/11) fora promulgada pelo próprio Congresso Nacional, justamente visando deixar claro que o que não se pode fazer antes do trânsito é a prisão. Neste sentido, leia-se: Código de Processo Penal: “Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado."
[4]O devido processo legal está estampado na Constituição Federal, que assim dispõe: Art. 5º. LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
[5]Não me interpretem como positivista a partir desta fala. Não sou, e posso provar!
[6]Para autores como Luigi Ferrajoli, a noção de Democracia Constitucional, diferentemente de suas antigas acepções, é, agora, "o conjunto de limites impostos pelas Constituições a todo poder, que postula, em consequência, uma concepção de democracia como sistema frágil e complexo de separação e equilíbrio entre poderes, de limites de forma e de substância a seu exercício, de garantia dos direitos fundamentais, de técnicas de controle e de reparação contra suas violações. Um sistema em que a regra da maioria e a do mercado valem apenas para aquela que podemos chamar de esfera do discricionário, circunscrita e condicionada pela esfera do que está limitado, constituída pelos direitos fundamentais de todos[...] - o pacto de convivência baseado na igualdade de direitos, o Estado social, mais que liberal, de direito." [tradução livre]. FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. 2ª ed. Madrid: Editora Trotta, 2010, p. 47.
[7]A vigente Constituição Federal brasileira consagra o princípio que chamamos de "Juiz Natural", determinando, em seus termos, que: "Art. 5º: XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;" e que "LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;" As efetivas regras de competência jurisdicional encontram-se expressamente positivadas no Livro II de nosso vigente Código de Processo Civil, sobretudo em seu Título III, que trata acerca da Competência Interna, entre os artigos 42 e 66; e no Código de Processo Penal, em seu Livro I, especialmente no Título V, entre os artigos 69 e 91.
[8]Como já referido, a questão de se o Trânsito em Julgado seria ou não requisito para que se decretasse a prisão definitiva de um réu sofreu diversas alterações ao longo do tempo, não obstante o texto constitucional e legal permanecesse intacto e bastante claro durante os mais de 30 anos de vigência de nossa Constituição, o que atesta que, com efeito, vivemos ainda sob égides autoritárias, não apenas no executivo, mas, sobretudo, no próprio judiciário nacional.
[9]Conforme já dito, as regras processuais encontram-se positivadas nos seus respectivos códigos. A obrigatoriedade de que os mesmos sejam seguidos, para fins de se exigir intervenção estatal à situações fáticas de nosso convívio social pode ser lida em nossa Constituição, que estabelece, em seu artigo 5º, a garantia do devido processo legal, conforme segue: "LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;"
[10]Lula foi preso sem provas... isso, por si só, já fere a concepção de presunção de inocência que, acima de tudo, repassa o ônus probatório ao Estado em matérias penais. Sua condenação se deu em razão de hipotético crime de corrupção passiva, onde se exige, para tanto, comprovação de que o réu tenha exigido retribuição ilícita por favorecimento ilegal concedido pelo mesmo a terceiros, em razão de seu cargo ou função pública. Tanto o favorecimento quanto a retribuição jamais foram provados e sequer determinados no caso do ex-presidente, bastando, para a condenação, a ideia genérica e, portanto, ilegal e inconstitucional de que haviam fortes indícios (?????). Ademais, foi preso antes do trânsito em julgado, o que é expressamente vedado pela Constituição, através de sua presunção de inocência e da própria lei processual penal, que estabelecia, à época, e até os dias de hoje, a expressa regra de que ninguém pode ser preso antes do trânsito em julgado. O ex-presidente somente foi preso por razões políticas, cuja materialização envolveu um "grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo". Somente pelo fato de o Supremo Tribunal Federal ter restringido (ilegitimamente) a interpretação da ideia de presunção de inocência, para fins de falsamente se autorizar a interpretar a lei processual penal, que vedava a prisão antes do trânsito em julgado, como inconstitucional, é que a prisão do ex chefe de Estado foi permitida. A decisão do Supremo é tão esdrúxula que nem mesmo uma criança se deixaria enganar. Observem: a CF diz que não se pode considerar ninguém culpado antes do Trânsito em Julgado. Isso, por si só, já seria suficiente para concluirmos que, se ninguém pode ser considerado culpado antes do TJ, tampouco pode este alguém sofrer qualquer sanção penal antes do mesmo. Não obstante, há, ainda, expressa disposição legal que, no art. 283 do Código de Processo Penal, clarifica a questão ao determinar que não apenas a culpabilização é vedada antes do trânsito, mas também e, sobretudo, a prisão. Pois o STF considerou, à época, tal disposição como inconstitucional. Pergunta que fica: qual dispositivo constitucional esta lei confronta/infringe para ser assim considerada e, portanto, não aplicada no caso em questão? Ainda vivemos em um Estado Constitucional de Direito? Fica a dúvida! 
[11]Este trecho de minha fala me faz recordar de um dos mais belos clássicos da literatura filosófica: "A consolação da Filosofia", de Boécio (460-524 d.C.). Trata-se de obra que o autor romano redigiu no cárcere, à espera de sua condenação capital, tendo perdido todos os seus bens. O livro conta um hipotético diálogo travado entre o autor e a Deusa da Filosofia, onde o mesmo inicia narrando suas insatisfações à ela em razão de ter "perdido tudo" e ela lhe retorna dizendo que, em verdade, o que ele perdeu nunca foi dele. Eram, na verdade, benesses concedidas pela Deusa da Fortuna, frente a qual nada de diferente poderia se esperar, pois era assim a forma de agir desta deidade, ou seja, trazer e levar embora tudo na mesma velocidade. Neste sentido, nos narra Boécio, quanto às palavras da Deusa da Filosofia: "Acaso não tens verdadeiramente nenhum bem que seja teu próprio e inerente à tua natureza, para que seja preciso procurares bens em objetos externos e estranhos a ti? A ordem das coisas se inverte a tal ponto que um ser vivo, racional e feito à imagem de Deus, crê poder distinguir-se apenas pela posse de objetos sem vida! E outros seres vivos se contentam em ser o que são, mas vós, que sois dotados de alma e feitos à semelhança de Deus, vós empregais vossa natureza na busca de objetos sem importância, sem noção da desigualdade da troca e da ofensa que fazeis ao Criador. Ele, o Criador, quis que os homens estivessem acima de todas as criaturas terrestres, e vós vos aviltais colocando-vos abaixo do que é mais vil. Com efeito, se é evidente que todo bem pertencente a outro vos parece mais valioso do que para aquele que o possui, quando considerais que os objetos mais insignificantes são bens para vós, então vos colocais a vós mesmos como inferiores a esses objetos. E, de fato, este raciocínio é exato; pois assim é a natureza humana: superior a todo o resto da criação quando usa de suas faculdades racionais, mas da mais baixa condição quando cessa de ser o que realmente é. Nos animais, essa ignorância de si mesmos é inerente à sua natureza; no homem, é uma degradação. Como é grande o vosso erro quando pensais em vos exaltar com coisas externas! ...quando alguém se distingue pelos ornamentos que ostenta, são os ornamentos que são admirados, e não quem os traz."         BOÉCIO. A  consolação da Filosofia. Trad. Willian Li. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2016, p. 54.
[12]O inquérito tramita sob sigilo, mas pode ser consultado através do seguinte endereço eletrônico: <https://www.conjur.com.br/dl/comunicado-supremo-tribunal-federal1.pdf>.
O relatório do inquérito, prolatado pelo Ministro designado para conduzi-lo pode, por sua vez, ser consultado pelo seguinte endereço: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/inq4781.pdf>.
[13]A portaria pode ser acessada através do seguinte link: <https://www.conjur.com.br/dl/comunicado-supremo-tribunal-federal1.pdf>.
[14]Os requisitos formais do inquéritos estão previstos expressamente no Código de Processo Penal vigente, nos arts. 5º e ss. Referentemente às limitações materiais de seu ato de instauração, lê-se, a Portaria que o instaura, seguem, em sentido semelhante ao nosso, as lições de famigerados doutrinadores nacionais, a exemplo de Guilherme Nucci, para quem: "Requisições dirigidas à autoridade policial, exigindo a instauração de inquérito contra determinada pessoa, ainda que aponte o crime, em tese, necessitam conter dados suficientes que possibilitem ao delegado tomar providências e ter um rumo a seguir. Não é cabível um ofício genérico, requisitando a instauração de inquérito contra Fulano, apenas apontando a prática de um delito em tese. NUCCI, Guilherme de Sousa. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 4. Ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 162.
[15]Com efeito, a publicização de informações falsas acerca de outras pessoas que incutam em calúnias, difamações ou injúrias encontram tipificação legal em nosso código penal. Fora disso, é fato atípico.
[16]Curioso é o caso de um país que permite instaurar inquéritos por iniciativa da vítima, sendo ela a mesma pessoa que irá julgá-los, em nome dos direitos à honra de Ministros, que vem efetivamente sendo atacados sistematicamente por parcela da população, ao passo que, de outro lado, sustenta-se ser "mero uso de direito à liberdade de expressão" que um empresário financie mensagens de cunho ofensivo, a serem veiculadas por empresas de aero-mensagens!
Enquanto o STF invade competência dos demais poderes ao instaurar inquéritos para apurar ofensas contra seus julgadores, o judiciário local postula, referentemente às ofensas aéreas, que "A argumentação [de que a honra foi ofendida com mensagens chamando o ex-presidente de ladrão], entretanto, não merece guarida", pois, continua o Magistrado: "Nos termos do art. 5º, inciso IV, da Constituição Federal, é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Tal garantia – da liberdade de expressão – tutela, ao menos enquanto não existir colisão com outros direitos fundamentais ou valores constitucionalmente estabelecidos, toda opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer pessoa (Gilmar Ferreira Mendes; Inocência Mártires Coelho; Paulo Gustavo Gonet Branco; Curso De Direito Constitucional, 2ª ed., p. 361).
Não satisfeito, MM. sr. Juiz ainda busca respaldo no próprio Supremo Tribunal Federal, quando conclui: "Isso porque, conforme já destacado pelo Supremo Tribunal Federal, a liberdade de expressão é verdadeiro direito fundamental (de primeira dimensão), cujo manto de proteção acoberta a exposição de fatos atuais ou históricos, além da crítica (HC nº 83.125, rel. Min. Marco Aurélio, j. em 16.09.2003)."
[17]A noção de separação dos poderes é antiga, podendo ser encontrados indícios de que já se fazia presente ainda na Antiguidade, entre os gregos, por exemplo. Nossa compreensão atual de divisão tripartite decorre, contudo, de concepções advindas de filósofos como Montesquieu, para quem "Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos." MONTESQUIEU. O Espírito Das Leis. Edição Kindle. Posição 3690.
[18]A versão integral do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal pode ser acessada através do seguinte link: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF.pdf>.
[19]Não vou entrar no mérito da discussão acerca da recepção deste regimento interno pelo nosso vigente sistema constitucional. É necessário que se diga, porém, que ele fora promulgado anteriormente à promulgação de nossa atual Constituição, o que faz pender sobre o mesmo a dúvida acerca de se ainda se mostra válido, devendo tal análise ser realizada confrontando-o com os ditames da nova Constituição. Em meu entender, a Constituição de 1988, não à toa chamada "Constituição Cidadã", ao instaurar a separação dos poderes, terminou por não recepcionar normas como a que se visou usar neste inquérito em questão, onde se permite que o Judiciário realize atos que fogem à sua competência natural - como um inquérito. Não por outra razão, a aludida Carta determina as atribuições do STF em seu artigo 102, sem contemplar a hipótese de instauração de inquéritos, o que denota a não recepção do mencionado regimento.
[20]O caso do Janot seria um bom exemplo se ele houvesse levado a cabo. Segundo reportagem do portal G1, o antigo procurador, Rodrigo Janot, já teria presenciado sessões de julgamento do STF portando arma de fogo, com a intenção de assassinar os Ministros. Neste sentido, ver: < https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/09/27/janot-diz-que-foi-armado-ao-stf-com-intencao-de-matar-gilmar-mendes-ministro-sugere-ajuda-psiquiatrica-a-ex-pgr.ghtml>.
[21]O aludido regimento, trata acerca de competência do STF para instaurar inquéritos acerca de fatos que ocorram nas suas dependências. Neste sentido, tem havido diversas tentativas ilegítimas de alargar a interpretação dos termos utilizados pelo dispositivo regimentar, para fins de hipoteticamente autorizar a instauração do referido inquérito. Trataremos em outra oportunidade acerca da necessidade de respeito aos limites sintático-semânticos dos dispositivos legais. Todavia, para fins de se ilustrar, cite-se o que declara, por exemplo, de maneira completamente ilegítima e, portanto, equivocada, o jornalista Reinaldo Azevedo: " Dependência' do Supremo, nesse caso, é qualquer lugar em que a Corte tem jurisdição: o Brasil inteiro." - Veja mais em <https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2020/06/11/fachin-e-fake-news-direito-ao-dissenso-nao-impoe-consenso-pela-violencia.htm?cmpid=copiaecola>.
[22]Autores da alçada de Lênio Streck, que outrora manifestava-se no sentido de classificar como inconstitucional o inquérito em tela, hoje se posiciona favorável ao mesmo, quiçá vencido por seu profundo (e, deveras, massivamente compartilhado) desejo de ver a queda deste governo e seus sistemas fraudatórios. Não por outra razão, o jurista se vê, na completa ausência de fundamento legal brasileiro, obrigado a recorrer a institutos do Direito Estadunidense, como a ideia do Contempt of Court, que, muito embora se deseje, não encontra qualquer correspondência no sistema jurídico nacional, posto que, diferentemente de lá, somos de tradição legalista (civil law), codificada, com matriz no direito alemão, cujo poder máximo advém das leis e da Constituição antes que dos costumes ou da força de decisões judiciárias precedentes. Ademais, tal instituto norte-americano serve, àquele país, para que se faça cumprir as determinações das cortes quando estas encontrem eventual resistência. Caso completamente diverso é a noção de que o STF possa instaurar ele próprio um processo para apurar crimes contra honra em desfavor de seus Ministros. Norma que mais se aproximaria desta noção seria o que prevê, por exemplo, os §§ 1º e 2º do art. 77 do CPC, que declara que o não cumprimento de deveres processuais inerentes às partes poderá ser considerado "ato atentatório à dignidade da Justiça", podendo ser punido com multa, sem prejuízo de sanções penais, a exemplo dos crimes de desobediência, previstos especialmente nos art. 330 e 359 do Código Penal. Sobre o artigo do Lênio que concorda com nossa posição atual, veja-se: <https://www.conjur.com.br/2019-abr-18/senso-incomum-stf-fake-news-temos-ortodoxos>.
Sobre o atual posicionamento do aludido autor, veja-se a manifestação proferida pelo mesmo ao portal de notícias "TV Democracia", através de sua plataforma no YouTube, que pode ser acessada através do seguinte link: <https://www.youtube.com/watch?v=EB-gs3Vtxdw>
[23]Segundo art. 55 da vigente Constituição Federal brasileira, "Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: II - cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar; § 1º - É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas

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Guilherme Azevedo

Advogado e Filósofo, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) com dupla titulação em Estudos Políticos pela Universidad de Caldas/Colômbia.

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