Cava subaquática armazena milhões de metros cúbicos de sedimentos majoritariamente poluídos retirados na dragagem de canal em Cubatão; empreendimento pertence à empresa que tem entre seus acionistas a mineradora Vale e é objeto de críticas por parte de especialistas ambientais e moradores da Baixada Santista    


Cubatão e Santos. Cidades do litoral sul paulista que juntas servem de residência para mais de 500 mil pessoas. A pouco mais de 65 quilômetros do Marco Zero de São Paulo, capital do Estado, na divisa entre esses municípios, um buraco de 400 metros de diâmetro – maior do que o estádio do Maracanã – e 25 metros de profundidade aberto há menos de cinco anos está no centro de uma discussão em que as principais personagens são os moradores locais, muitos deles ribeirinhos e pescadores artesanais, especialistas ambientais e sociais da Baixada Santista e as empresas VLI Multimodal S.A, prestadora de serviços no setor de logística, e Usinas Siderúrgicas de Minas Gerais – Usiminas, uma das maiores companhias siderúrgicas do País.
Visão das margens do Rio Casqueiro na altura da Vila dos Pescadores, em Cubatão; foto: Júlia Sanchez
Ali, em pleno Estuário de Santos – nas águas quietas e doces do Rio Casqueiro, próxima ao manguezal da Ilha Piaçaguera –, a Confined Aquatic DisposalCAD, Dispositivo de Confinamento Aquático, em tradução livre, nome técnico dado ao buraco também conhecido por cava subaquática, ocupa uma área de cerca de 180 mil metros quadrados e já armazena mais de 2,6 milhões de metros cúbicos de sedimentos majoritariamente poluídos retirados no processo de dragagem de navegação do Canal Piaçaguera, principal rota de acesso de navios de carga ao Terminal Integrador Portuário Luiz Antônio Mesquita – TIPLAM, porto administrado pela VLI, fundada em 2010 no formato de holding controlada por quatro acionistas, entre eles a mineradora Vale.

Cidade mais poluída do mundo

O sedimento despejado na cava remonta à segunda metade do século XX, quando Cubatão foi escolhida para a instalação de um polo industrial.

No início da década de 1980, com descontrole ambiental ao ponto de condenar à morte crianças por conta da poluição do ar, provocada pelas grandes empresas do parque, a cidade foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas – ONU como a mais poluída do mundo. Havia elevados índices de poluentes no ar, solo e água.

Empresas instaladas no Polo Industrial aproveitavam-se dos rios da região para destinar os efluentes líquidos provenientes da produção, como os rejeitos jogados no Canal Piaçaguera pela então Companhia Siderúrgica Paulista – COSIPA, hoje Usiminas, no processo de fabricação de aço. Atualmente as empresas dizem contar com sistemas de controle e destinação para os poluentes. Procurada pela equipe de Reta Final para colaborar com a reportagem, a Usiminas não respondeu o contato. 
Detalhamento do projeto de dragagem do Canal Piaçaguera e local de instalação da cava; imagem: reprodução / vídeo institucional da VLI
A prática insustentável contribuiu para a formação de uma lama poluída com alta concentração de metais pesados e dos denominados Hidrocarbonetos Aromáticos Políciclicos – HAPs no leito do Canal. Os HAPs são poluentes oriundos da queima insuficiente de substâncias orgânicas – em geral, combustíveis – e agentes que podem causar diversos tipos de câncer quando do contato com a pele humana ou, como seria o caso, ingerido por meio do consumo de pescados daquela área.

Com o leito poluído, a dragagem do Canal, quando há o desassoreamento do corpo d’água, demanda técnicas mais sofisticadas e tecnologias capazes de remover o passivo ambiental deixado pelas empresas ainda no período em que as atividades industriais não eram suscetíveis aos sistemas de controle de poluentes.

“Enorme passivo ambiental” ou “melhor solução”?

A escolha da VLI pela instalação da cava subaquática não teria acompanhado tal preocupação. Ao menos é o que afirma Élio Lopes dos Santos, químico, engenheiro industrial e autor de pareceres técnicos sobre a dragagem e o buraco instalado no Piaçaguera.

“Há o abstrato e o concreto. No abstrato, todos são favoráveis ao meio ambiente, todos defendem. Já no concreto querem fazer isso que estão fazendo na cava, ou seja, se beneficiar de uma tecnologia ultrapassada, que não é sustentável, porque deixa um enorme passivo ambiental à atual e futura gerações, por ter feito lá um buraco para enterrar os sedimentos e depois cobrir”, disse o engenheiro, que foi gerente da agência da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo – CETESB em Cubatão por 25 anos, em alusão à fase do projeto da cava em que a lama contaminada será “tampada” com sedimentos limpos.

Infográfico do processo de dragagem, por sucção, do Canal Piaçaguera; arte: Mônica Sobral para o jornal A Tribuna
Para a Silvia Sartor, bióloga com mestrado e doutorado em oceanografia pela USP, a decisão da VLI pela instalação da cava apoia-se no aspecto econômico do projeto. “A empresa está gastando muito menos do que qualquer alternativa”, comenta.

Gerente geral de portos da VLI, Alessandro Gama diz que a cava foi a melhor solução encontrada pela empresa, “considerando as características do sedimento: o volume, a forma como ele foi disposto e o tipo de draga”.

Ainda de acordo com o porta-voz, a VLI quer “limpar o Canal”. “No momento em que retiramos todo esse sedimento e fazemos a limpeza do Canal a CAD atende o seu fim de confinamento, ou seja, deixa-se de ter uma condição de material espalhado e passa a ter uma condição confinada mais controlada e muito menor”, explica, lembrando que “a dragagem será feita apenas uma única vez, porque o objetivo da cava é receber os sedimentos que estão com contaminação”.

De uma retificação, como é definido o conjunto de alterações de um curso d’água, realizada na década de 1960 nos rios Mogi e Piaçaguera criou-se o Canal de mesmo nome deste último. Com 60 metros de largura e 10 metros de profundidade, a via aquática foi aberta para atender aos interesses comerciais da COSIPA.  

No início dos anos 2000, ainda como COSIPA, a atual Usiminas entrou com pedido junto à CETESB para aumentar o nível de dragagem do Piaçaguera e, com isso, receber embarcações com calado maiores em seu terminal portuário. Em contrapartida, apresentou algumas alternativas para a destinação dos materiais contaminados do Canal, sendo uma delas o uso do chamado Dique do Furadinho, espaço em terra localizado dentro das dependências da empresa, para realizar no local o devido tratamento dos sedimentos. O Dique se enquadra na exigência imposta entre os anos de 2004 e 2005 em reuniões do Conselho Estadual de Meio Ambiente – Consema de que os resíduos deveriam ser alocados em uma área já degradada para evitar um novo dano ambiental.

Em 2005, o órgão ambiental expediu uma licença prévia válida por cinco anos para a empresa realizar a dragagem de até 12,5 metros de profundidade – considerada medida original do leito. Passados 11 anos, em 2016, a CETESB, com base na licença prévia vencida, aceitou o pedido da Usiminas para a abertura da cava, que foi idealizada e instalada por outra empresa, a VLI.  Em resposta a questões levantadas pelo deputado estadual Paulo Côrrea Júnior (PATRIOTA), a Companhia afirma que “não há caducidade da Licença Prévia quando iniciada a implementação das ações cuja viabilidade ambiental (aprovação da concepção) é atestada pela Licença Prévia”.

A equipe de Reta Final contatou a CETESB por e-mail, enviando-lhes seis perguntas sobre o processo de licenciamento e atuação do órgão no monitoramento da cava. Em resposta, a CETESB enviou uma nota que pode ser lida, na íntegra, mais abaixo.

Ao mesmo tempo, a VLI entrou com pedido junto ao IBAMA para aumentar a dragagem de 12 para 15 metros de fundura. Para Élio, a CETESB ter permitido o empreendimento à Usiminas e a cava ter sido aberta pela VLI é apenas um dentre os diversos vícios do licenciamento. “Tem uma questão aí no meio também que envolve – eu nunca vi isso na história da CETESB – a questão da titularidade, ou seja, um tira a licença e o outro é que faz”, expõe Lopes, que explica ainda por que o Dique do Furadinho não foi usado, conforme sugerido pelo Estudo e Relatório de Impacto Ambiental – EIA RIMA aprovado em 2005.
Arte gráfica apresenta as delimitações da cava subaquática instalada no Estuário de Santos; imagem: reprodução de vídeo institucional da VLI
“A Usiminas pretende ampliar e transformar aquilo lá em pátio de contêiner e, se usasse aquilo lá, seria um espaço físico a menos para desfrutar na implantação do tal pátio. Está muito bem clara essa manobra”, comenta em referência à informação divulgada pela imprensa local de que a Usiminas estaria trabalhando para expandir o seu porto.

Ao descrever o que é e como se dá o funcionamento da CAD, Alessandro Gama afirma que a cava está devidamente autorizada e o espaço onde está instalada foi, sim, considerado no processo de licenciamento. “A área onde foi construída a cava foi escolhida por ser a mais abrigada, o que significa que sofre pouca ação de corrente e tem estabilidade maior em relação às demais do Canal Piaçaguera”, disse, lembrando que a distância entre o empreendimento o Canal também foi levado em consideração. “Estar próxima do Canal é uma condição da CAD para que a movimentação entre o sedimento removido do Canal e a disposição tenha a menor distância possível, para não se ter o risco de dispersão durante a dragagem”.

Para o diretor da Associação de Combate aos Poluentes – ACPO, Jeffer Castelo Branco, a VLI deveria ter optado pelas alternativas. “Há próximo da cava várias áreas de terra seca onde se pode destinar o material de forma ambientalmente correta e em seguida tratar os sedimentos para que possam ser reutilizados”, expõe.

“Não é a cava aprovada”

A técnica de se abrir uma cava subaquática para despejo de sedimentos tóxicos ou não-tóxicos é muito usual nos EUA. A United States Environmental Protection Agency – US EPA, agência ambiental norte-americana, regula a abertura dos buracos em dois modelos de cavas: confinada, quando o espaço é revestido por uma camada de concreto e, em alguns casos, conta com uma barreira de alvenaria, como uma espécie de barragem; e a denominada de contida, quando se aproveita uma depressão do terreno marinho para a destinação dos resíduos. A EPA ainda monitora a quantidade de sedimentos alocados nos espaços.

No porto de New Bedford Harbor, localizado no estado de Massachusetts, por exemplo, os proprietários já instalaram duas cavas e estão escavando uma terceira. As duas em funcionamento são de confinamento e armazenam juntas 250 mil jardas cúbicas de sedimentos contaminados, o que corresponde a cerca de 230 mil metros cúbicos. A terceira cava, quando aberta, receberá a mesma quantidade. Os números representam dez vezes menos do que a capacidade do buraco aberto pela VLI no Largo do Casqueiro.

Jeffer Castelo Branco diz que o EIA RIMA da obra prevê que o modelo de cava aprovado pelo Consema para o Largo do Casqueiro é a confinada, em que há o isolamento completo de todo o seu conteúdo com o meio externo, e não contida como é a instalada pela empresa de logística. “A cava contida é totalmente diferente daquela que foi aprovada pelo Consema e jamais deveria receber a taxa elevada de resíduos em sedimentos como aconteceu. Então ela totalmente irregular e depõe contra o meio ambiente e a saúde pública”, afirma Castelo Branco.

A ACPO foi fundada em 1994 e lançou ano passado uma petição contra a cava. “Um primeiro esforço” no sentido de conscientizar a opinião pública, define Jeffer. Clique aqui para ler o documento.

Apesar de mencionar em mais de uma oportunidade o termo “confinado”, Alessandro Gama em nenhum momento fala que o ambiente da cava é revestido. Ao explicar a estrutura, Gama diz que a “CAD nada mais é que um aprofundamento em um ponto específico na margem do Canal, com 25 metros no centro e com uma geometria cônica, tendo em sua parte inferior um diâmetro de cerca de 300 metros e na parte superior, 400 metros”.

O porta-voz diz que o formato cônico daria mais estabilidade, particularmente no período em que esteve vazia. "Já não existe tanto risco de alguma lateral ceder agora que a cava está praticamente preenchida com os sedimentos”, afirma.

Vila dos Pescadores

A mais de dois quilômetros da cava, na Vila dos Pescadores – entrada da Baixada Santista para quem chega pela rodovia Anchieta –, aproximadamente 200 homens e mulheres que vivem exclusivamente da pesca tiveram suas atividades alteradas desde a abertura do buraco. José Arnaldo dos Santos, de apelido Vadinho, preside a associação comunitária do bairro em que cerca de 70% das pessoas residem em casas de palafitas, às margens do Rio Casqueiro, e afirma não ter sido convidado para participar do processo de instalação e operação do projeto da VLI. “O início do processo foi feito às caladas, à noite, no escuro, sem que ninguém soubesse”, conta Vadinho, demonstrando preocupação com a estrutura. “Se ali tiver algum veneno que venha gerar uma doença mais para frente, vamos ser o primeiro a sofrer as consequências”.


Vídeo produzido pela Frente Sindical Classista da Baixada Santista em parceria com o Instituto Sócio Ambiental e Cultural Vila dos Pescadores

Para o eletricista Osvaldo Pereira da Silva, também morador da Vila, os pescadores da região foram prejudicados com a instalação da cava subaquática. “Ninguém quer comprar os peixes, porque falam: ‘é peixe da Vila dos Pescadores? Isso está poluído”, comenta Da Silva.

Há relatos de pescadores que antes pescavam praticamente no “quintal de casa”, no Rio Casqueiro, e que atualmente seguem para Bertioga, a 30 km de distância, e Itanhaém, a cerca de 50 km da Vila dos Pescadores.

O porta-voz da VLI Alessandro Gama discorda da versão dos moradores de que teriam sido atingidos com a abertura da cava. Segundo Gama, “o material dragado estava no fundo do Canal Piaçaguera há décadas, então se havia algum risco para a população próxima ali, ele existiu durante o período em que o material esteve exposto”.

A VLI, ainda segundo Gama, justifica que utilizou um tipo de dragagem por sucção, com o objetivo de inibir o risco de dispersão ao remover os resíduos do Canal, e que o processo envolveu, sim, as comunidades de pescadores, desde que “formalmente associadas”.  Alessandro cita como exemplo as capatazias, que, de acordo com o responsável pelos portos da empresa, durante todos os anos do projeto participaram de reuniões com os coordenadores da obra. “Foram apresentados os resultados dos estudos, como seria o processo de dragagem e, da mesma forma, demos todas as condições para que as capatazias acompanhassem os trabalhos e se certificassem de que estávamos fazendo conforme planejamos”, finaliza. 

Ligada à causa da cava, a bióloga Silvia Sartor observa que os moradores da Vila dos Pescadores foram pegos de “surpresa”. “Foi uma conduta muito errada, porque nas normas para o licenciamento há a exigência de que se converse com a comunidade. Não houve a intenção, a seriedade nesse sentido”, afirma.

O que fazer agora?

A VLI assegura que os resíduos da cava estão em processo de decantação para, em seguida, serem cobertos com uma manta de sedimentos limpos, conforme consta do projeto inicial. A empresa garante ainda que não precisará abrir novas cavas para os materiais que ainda sairão na dragagem do Canal Piaçaguera.

Para Sartor, a retirada dos sedimentos da cava é o melhor a se fazer agora. “Acredito que até uma tubulação por baixo, para retirar de forma segura e levar para um espaço em terra seria possível”, sugere.

Com a cava aberta e em funcionamento, Élio lopes também recomenda a retirada dos sedimentos do buraco. “O certo seria eles prepararem uma célula e uma bacia de decantação em terra, bombear o material e tratar o líquido”, comenta.

Jeffer Castelo Branco diz que “se deve, imediatamente, apresentar um projeto de remoção e tratamento, pois seria uma covardia nós, da presente geração, estarmos estocando resíduos perigosos para os nossos filhos e netos”.

Presidente da associação comunitária da Vila dos Pescadores, Vadinho não se mostra muito favorável à ideia dos últimos três especialistas e afirma que “já que foi feito, tem ficar onde está. Mexer mais uma vez é veneno em dobro para a gente”.

Rádio.Doc: seu podcast de boas histórias

O caldo denso de posições divergentes sempre rende uma boa história. Em sua estreia, o Rádio.Doc, podcast de boas histórias do projeto Jovens Cronistas, levanta questões e alimenta a discussão sobre a cava subaquática de Cubatão: um buraco maior do que o estádio do Maracanã e com 25 metros de profundidade aberto para armazenar sedimentos poluídos retirados na dragagem do Canal Piaçaguera.

Ouça e compartilhe. Boa audição.



Com a palavra, CETESB

Em nota, "a CETESB esclarece que o processo de licenciamento da Cava seguiu a legislação vigente e a operação no local ocorre desde meados de 2017, sem registro de incidentes, com previsão de término para o segundo semestre deste ano".

Segundo a companhia, " a titular da Licença Ambiental é a USIMINAS e não há impedimentos legais para tratativas com terceiros. Cabe à empresa responsável pela operação encaminhar à CETESB relatórios quinzenais sobre a operação de dragagem e disposição do material dragado".

Ainda no texto enviado à reportagem, a CETESB diz que "para a aprovação da abertura foram realizadas simulações que demonstraram a estabilidade e considerados mais de 10 mil ensaios físicos, químicos e biológicos (antes, durante e após a disposição do material dragado na cava), os quais não demonstraram quaisquer alterações no ecossistema".

Em uma posição que soa como entusiasta do projeto, o órgão afirma que,"no caso de Cubatão, houve ainda uma medida de segurança adicional, que foi a instalação de uma cortina de silte em todo seu perímetro (490 metros). Ao atingir o limite para depósito do material dragado, o local será coberto com areia e haverá a recomposição natural da área".

Este texto foi atualizado pela última vez em 03/06/2019, às 16:11.

Produzido por Reta Final, grupo acadêmico integrado por:
Adriano Garcia – Jornalista 
Claudio Porto – Jornalista (texto)
Gervásio Henrique – Jornalista (reportagem de campo)
Júlia Sanchez – Jornalista (reportagem de campo)
Renan Salles – Jornalista (reportagem de campo)
Valter Silva – Jornalista (reportagem de campo)
Victor Ricardo – Jornalista
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Redação

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