Sérgio Moro e membros da Lava Jato são pegos em conversas nada legais, em meio a um (des)governo que completa seis meses

No documentário “Democracia em Vertigem”, a cineasta Petra Costa se propõe a contar em quase duas horas a “ascensão e queda” do Partido dos Trabalhadores à frente da Presidência da República e o recrudescimento de uma polarização que sempre esteve cercando a opinião pública brasileira. Ali, os acontecimentos são retratados a partir do ponto de vista da própria diretora que diz ter testemunhado como os agentes políticos tomaram suas decisões nas duas primeiras décadas deste século. O teor do filme, que é o que de fato interessa, mostra como todos os brasileiros estavam envolvidos nas escolhas: do desatento (por razões diversas, entre elas a financeira, ainda um limitador do acesso à informação), que se neutralizou e optou por não participar do processo, aos que se colocaram em lados distintos do muro e tomaram as ruas para defender, cada qual, a plataforma política de preferência de seu perfil social (construído por fatores que vão se somando ao logo do tempo). Estavam todos compondo, à sua maneira, a cena dos últimos anos da vida pública nacional.

Imagem: Carlos Latuff
A história contada no documentário é finita: termina com a prisão do ex-presidente Lula, em abril de 2018. Desde lá, a divisão da sociedade vem passando por processo de solidificação, o que guarda aspectos positivos. Antes, é preciso dizer que, de fato, o filme, disponível na Netflix desde 19/6, permite uma espécie de retrospectiva. Ainda assim, é um produto (o filme) feito para um público segmentado e um nicho específico, não pelo tratamento dado ao assunto, mas pela exclusividade da disponibilização que, ao menos neste início, se dá apenas pela plataforma de streaming, com planos a partir de R$ 21,90/mês (a razão financeira abordada no 1º parágrafo).

Um pouco mais democrático no acesso, por estar disponível “gratuitamente” no Youtube, a série de três episódios de “Brasil em Transe”, do jornalista brasileiro Kennedy Alencar, também cumpre bem o papel de contextualizar como tudo, absolutamente tudo, no âmbito das escolhas e decisões sempre esteve interligado. Nada foi ou é por acaso no campo do pragmatismo político.
Imagem: Chargista Duke
Iniciar este texto recomendando duas obras que expõem o passado recente do País e como este influenciou nos nossos dias e no futuro próximo revela que, felizmente, o Brasil dos últimos anos começa a ter quem o conte. Isso carrega aspectos positivos, como as condições para análises mais precisas.

Vaza Jato

As obras nos permitem, por exemplo, relembrar a atmosfera dos tempos em que a Lava Jato tinha força suficiente para evitar a divulgação das suas máculas. Hoje não tem mais.  
Imagem: Chargista Toni D'Agostinho
Antes de seguirmos para uma contextualização dos quase seis meses de Jair Bolsonaro e seu grupo no Poder, o mais recente escândalo político exposto pelo site jornalístico The Intercept, ainda que os veículos tradicionais custem a tratá-lo como tal, revela o que este JC e tantos outros projetos de mídia alternativa denunciam há anos sob a licença da análise crítica: a força-tarefa da operação Lava Jato, de fato, optou por abrir mão de ser apenas um agrupamento de combate à corrupção. Os seus integrantes se estruturam como organização política, usando de instrumentos jurídicos para retirar do páreo todos os considerados “inimigos”. Considerados por quem? Segundo as sete matérias publicadas pelo Intercept até o fechamento deste texto, tais “inimigos” eram definidos por figuras como o ex-juiz federal Sérgio Moro e os procuradores da República Deltan Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos Lima. Sim, eles foram pegos em conversas nada legais. Legais como derivativo de legalidade.
Charge: Gilmar, o "Cartunista das Cavernas"
Os textos publicados desde o domingo, 9/6, trazem à tona transcrições de conversas trocadas entre os membros da Lava Jato no aplicativo Telegram. Nas conversas até aqui divulgadas (até o momento divulgadas, reforça-se): orquestração para se impedir uma vitória eleitoral do Partido dos Trabalhadores na corrida presidencial de 2018. A “virada de mesa”, que tanto Moro tem dito nos discursos em que justifica a aposentadoria da magistratura e a ida para a política, viria com a candidatura e eventual eleição do ex-presidente Lula.  Isso, em um trabalho que se mostrou, a partir dos chats, planejado com antecedência e coordenado pelo ex-juiz que hoje é ministro da Justiça de Bolsonaro e colocado por alguns como pré-candidato à presidente do Brasil.
Imagem: Charge de Renato Aroeira
Do que foi revelado até este momento, destaca-se o poder probatório do material contra Moro e procuradores, ainda que talvez seja considerado apenas para anulação das decisões tomadas por eles. Os vícios apontados nas conversas são, sim, capazes de incriminar os próprios agentes, mas não podem ser usados neste primeiro momento porque não há certeza sobre a forma como as conversas foram acessas e vazadas (fala-se em hacker, em traição no grupo, e por aí vai).
Charge: Carol Andrade, "Barbie Cospe Fogo"
Por se tratar de publicações em série, e em andamento, é importante acompanhar com atenção a marcha dos desdobramentos e dar publicidade ao conteúdo, ao mesmo tempo em que também se trabalha para descobrir como as conversas chegaram onde estão hoje. Não deixa de ser uma oportunidade para a opinião pública discutir todos os aspectos que cercaram a Lava Jato: desde a atuação dos agentes, passando pelo apoio nas ruas, à cobertura jornalística feita a partir das ações.
Imagem: Chagista Jota Camelo
A TV Jovens Cronistas, canal oficial do blog no Youtube, tem acompanhado as atualizações daquela que está sendo chamada nas redes sociais de Vaza Jato. Clique aqui e confira.  

Seis meses

Apontado como beneficiário direto do encaixe de peças explorados por Petra e Alencar, do início deste editorial, o (des)governo Bolsonaro está a poucos dias de completar seis meses. Ainda que as redes tornem a compartilhar que são seis meses a menos de mandato, muitas das propostas políticas do grupo foram iniciadas e já apresentam graves consequências para o conjunto geral da sociedade.
Imagem: Cartunista Claudio Mor
Os cortes no orçamento da área de educação, por exemplo, ameaçam a manutenção de inúmeras pesquisas científicas. A medida foi provocada inicialmente por pura birra ideológica, quando da fala de Abraham Weintraub ao jornal O Estado de S. Paulo sobre “balbúrdia” nas universidades públicas, e não por dificuldades de arrecadação como justificam hoje os burocratas em uma reação às mobilizações estudantis de maio. Alguns estudos, diga-se, só não serão interrompidos porque a oposição conseguiu negociar com aquilo que se denomina de base aliada do (des)governo no Congresso, para a votação do crédito suplementar de quase R$ 250 bilhões, o remanejamento de R$ 1 bilhão para a educação. O (des)governo questionou, mas cedeu.
Charge: Carol Andrade, "Barbie Cospe Fogo"
Outros pontos daquele programa de governo protocolado no Tribunal Superior Eleitoral – TSE nas eleições presidenciais do ano passado têm sido implementados, alguns certa celeridade, outros nem tanto. A esplanada dos ministérios do (des)governo tem lá seus técnicos, pessoas que seriam especialistas nas respectivas áreas, o que não quer dizer que priorizam o interesse coletivo ao definir as políticas de suas pastas.

No ministério da Cidadania, Osmar Terra mantém o programa de revisão e cortes de benefícios do programa Bolsa Família (quase 400 mil famílias somente em janeiro) e, mais recentemente, impediu a publicação de pesquisa com o panorama do uso de drogas no País, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, só porque o levantamento não apresentaria um surto de usuários de entorpecentes, como ele defende em seus discursos.

Na Agricultura e Meio Ambiente, comandados por Tereza Cristina e Ricardo Salles, respectivamente, os ruralistas do Agronegócio mandam e desmandam. Se no (des)governo Temer o lobby explícito desse grupo se dava prioritariamente junto aos parlamentares, sobretudo em busca de anistias financeiras, agora eles estão entranhados ocupando funções em ambos os ministérios. Para se ter uma ideia da gravidade, o Brasil acelerou o processo de aprovação de agrotóxicos e, somente nestes primeiros meses, já foram liberados mais de 160 novos venenos (até onde se sabe, não houve aperfeiçoamento do trâmite ou desburocratização do processo, com a criação de novos mecanismos, mas sim ações deliberadas, ou seja, por vontade própria da ministra e seus secretários). Já Salles, também conhecido como o ministro já condenado por improbidade administrativa do (des)governo, tem promovido verdadeiro esvaziamento da pasta de Meio Ambiente: no Instituto Chico Medes de Biodiversidade – ICMBio, responsável pela manutenção e fiscalização das unidades de conservação federais, o presidente e os diretores do corpo técnico foram substituídos por agentes de segurança do estado de São Paulo (policiais), e várias de suas unidades regionais devem ser fechadas; e os conselhos constituídos majoritariamente por figuras da área ambiental foram descontinuados.
Imagem: Chargista Amarildo
Nos outros ministérios as administrações não são muito diferentes. O que se ver em seis meses: pouquíssima efetividade no tocante, usando-se de uma expressão do próprio presidente, a atender as verdadeiras demandas do País, que segue apenas (é isso: apenas) observando, sem demonstrar reação, os indicadores sociais e econômicos refletindo piora e as expectativas se esvaindo.

Em seis meses nada foi feito, por exemplo, para estancar o aumento de brasileiros(as) desempregados(as). Nada é nada, mesmo. Para as mais de 13 milhões de pessoas em tal situação, nem mesmo palavras de acalanto, de que as coisas irão melhorar. O presidente e seus assessores fingem não ver. E não é de hoje que atuam assim. Para essas pessoas, a política é apenas o meio ideal para satisfações na esfera individual e coletiva (familiar). Não por acaso observa-se várias decisões de âmbito estritamente particular sendo tomadas. O fiscal do IBAMA que multou o presidente da República foi uns do que “rodaram”. Ora, por quê? Ingerência, talvez.
Imagem: Ilustrador Celso Schröder
A proposta de alteração, por exemplo, de multas e pontos na Carteira Nacional de Habilitação, assim como a retirada de radares de rodovias desconsiderando estudos, não encontra outro respaldo a não ser o de que, no fundo, se trata de uma vontade pessoal do chefe do Executivo. E o pior é que propostas nesse sentido é o que não falta no (des)governo.

Mudanças

Jair Bolsonaro governa o Brasil, naquilo em que o deixam (quem? As alas olavistas e militares), como se fosse a sua casa no condomínio Vivendas da Barra, onde é vizinho de Ronnie Lessa, principal suspeito de assassinado e vereadora Marielle Franco.

Em seis meses à frente da Presidência está muito claro que o presidente tem liberdade até certo ponto e em algumas áreas. Isso está tão escancarado que as mudanças já feitas em funções do governo federal foram todas pensadas pelas “alas” e, muitos casos, Jair Bolsonaro foi apenas o da assinatura dos termos de posse.
Imagem: Chargista Laerte
O (des)governo não se desfez de Marcelo Álvaro Antônio, coordenador de esquema de candidaturas laranjas do PSL em Minas Gerais, segundo aponta matérias do jornal Folha de S. Paulo, mas já não conta mais com Gustavo Bebianno (Secretaria da Presidência), Ricardo Vélez Rodrigues (Educação) e Carlos Alberto dos Santos Cruz (Secretaria de Governo). Houve outra alteração no corpo ministerial: o ministro Floriano Peixoto, que substituiu Bebianno, deixou a Secretaria da Presidência para assumir o comando dos Correios, de onde saiu, há alguns dias, o general Juarez Cunha, por ser “sindicalista” (foi fotografado com parlamentares da oposição, durante uma visita ao Congresso Nacional, e é contra a privatização da estatal).

Peixoto deixou a secretaria para o advogado e major da PM do DF Jorge Antonio de Oliveira Francisco – amigo íntimo da família Bolsonaro.

Outro amigo próximo alçado ao cargo de ministro foi o general da ativa Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira. Ele assumiu no lugar de Santos Cruz, maior baixa depois da queda de Bebianno, não apenas pelo cargo que ocupou (gabinete no Planalto), mas por também ter sido amigo de longa-data de Bolsonaro.
Charge: Renato Machado
Ao longo deste primeiro semestre de (des)governo quatro ministros foram trocados e 19 baixas no segundo escalão. Aqui insere-se Joaquim Levy, agora ex-presidente do BNDES. Houve cobrança por parte do presidente para a divulgação de uma suposta “caixa-preta” com dados do banco e o máximo que Levy conseguiu reunir foram aquelas informações apresentadas no dia 18 de janeiro (os dados compartilhados naquela ocasião já estavam abertos e disponíveis no site da instituição). No lugar, o presidente nomeou Gustano Montezano, amigo de algum tempo dos filhos e renomado arrombador de portão.

Há, entre os entusiastas, uma máxima que é preciso dar tempo para o presidente Bolsonaro. Sim, de fato ele está apenas no início de sua gestão. Mas não é possível que tudo esteja certo e que o governo tenha escolhido o melhor caminho para a resolução das deficiências do País.

Enfim, se já é estranho compreender o fato de terem o escolhido desconsiderando o retrospecto, quase 30 anos como deputado federal e nenhum projeto útil para o conjunto da população, é ainda mais difícil entender quem fecha os olhos para os primeiros seis de meses de algo que não tem o objetivo de dar certo. Ao menos não para a maioria dos brasileiros.

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Claudio Porto

Jornalista independente.

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