Independente do resultado da discussão no STF, a descriminalização do aborto precisa passar pelo Poder competente: o Legislativo

Acima da dualidade do “a favor” ou “contra”, os procedimentos que levam ao aborto de uma gestação são uma realidade que precisa ser discutida, debatida e, prontamente, regulamentada – leia-se legalizada.  A defesa ou não da descriminalização do aborto em casos não salvaguardados pelos artigos do 124 ao 128 do Código Penal, que criminaliza o ato, salvo em algumas circunstâncias – estupro, risco à vida ou fetos anencéfalos, deve se nortear pela promoção da vida humana presente no discurso de ambos os lados. Enquanto há quem apregoa ser uma violência ao direito à vida interromper o desenvolvimento de um embrião, há aqueles que denunciam a mortandade de mulheres em macas pelo submundo da clandestinidade médica. Para esses, o dispositivo legal serve para acirrar ainda mais a desigualdade entre os estratos sociais do País, já que mulheres com certa condição social têm acesso a procedimentos mais seguros, ainda que ilegais, enquanto as menos favorecidas seguem relegadas às clínicas clandestinas da periferia, correndo risco de vida e/ou à prisão por incorrer no crime.
Imagem: Cartum de Gilmar, o "Cartunista das Trevas"
À esteira do chamado “pañuelazo”, movimento que tem lançado mão de atos por toda a Argentina para cobrar do parlamento local o direito ao aborto até a 14º semana de gestão, o Supremo Tribunal Federal começou a debater a descriminalização do ato no Brasil, em uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF proposta pelo Instituto de Bioética – ANIS e pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL em março de 2017. A ADPF 442 pede à Suprema Corte o não reconhecimento, à luz da Constituição, dos artigos que criminalizam o aborto no Código Penal (já citados neste artigo) e permita o procedimento às gestações de até 12 semanas, sem punições para a mulher atendida e para o profissional envolvido. Ou seja, questiona a constitucionalidade dos artigos alegando que ferem o princípio da dignidade humana. A pedido da ministra Rosa Weber, relatora da petição, o STF convocou audiências públicas com 26 entidades para discutir o tema. E nessa voltamos à dualidade do início deste texto: há expositores tanto favoráveis quanto contrários à proposta pelas mais diversas razões.

O movimento psolista de invocar a Suprema Corte vem à medida que o Congresso Nacional, terra arrasada pelas investigações de combate à corrupção, abdicou-se do direito de discutir temas que vão além da agenda dita austera do (des)governo Temer. Apesar de ser tema controverso e catalisador de opiniões divergentes, a alteração ou não da lei que criminaliza o aborto precisa ser revista e passar por atualização. Divulgado em 2016, um estudo de 2010 apontou que, no Brasil, 500 mil abortos são realizados anualmente e que uma em cada cinco mulheres, na faixa de 40 anos, já passou pelo procedimento.
Imagem: Cartum de Gilmar, o "Cartunista das Trevas", em referência a dezembro de 2017(clique!)
No mundo real, o aborto acontece mesmo que à base de ilegalidades e mortes. O caso da fluminense Ingriane Barbosa, de 30 anos, foi lembrado por aqueles que defendem a descriminalização necessária no primeiro dia de audiências públicas, na sexta (03). A mulher morreu há pouco mais de dez dias por uma infecção contraída após realizar um aborto com talo de mamona, em Petrópolis, região serrana do estado do Rio de Janeiro. Ela deixou três filhos e já havia realizado aborto.

Também na sexta, Rafael Câmara, médico e coordenador da Residência Médica e Ginecologia da UFRJ, abriu as discordâncias afirmando que “a liberação do aborto, sim, é problema de saúde pública” e questionado os números apontados por levantamentos. “Não dá para estimar a porcentagem de abortos ilegais. Não há epidemia de internações por aborto. Essas estimativas são chutes. Isso é chute. Não está embasado”, disse Câmara sem expor nenhum documento que sustente sua posição. A também médica Lenise Garcia, representante do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida, se contrapôs à liberação da prática explicando, com nada além da retórica e do título, que “a fertilização é o referencial inegável para todas as etapas do desenvolvimento desde novo ser humano. Nenhum ser começa com 12 semanas, como nenhum mês começa no dia 12. De onde vêm esses referenciais temporais?”.

Esquecem-se, talvez, as incongruências de um discurso que defende o desenvolvimento de um embrião e que se omite quando a luta é pelo direito ao desenvolvimento pleno e saudável de uma criança, que contemple da infância à maturidade adulta e ofereça um amplo campo de oportunidades.

Estudo divulgado no final de 2017 retratou como 300 crianças e adolescentes – parte de um universo maior – sobrevivem no centro da maior cidade do País, São Paulo. O levantamento elaborado por cinco ONGs apontou tanto para a vulnerabilidade quanto para a invisibilidade de crianças, adolescentes e jovens da faixa etária de dois a dezessete anos. Há o movimento de defesa à vida enquanto feto, mas não em circunstâncias adversas como crianças e adolescentes morando nas ruas e avenidas, abandonadas à própria sorte e a mercê do aliciamento infantil para o tráfico de drogas e outros crimes. Nesta hora, a defesa do direito à vida se perde no debate pela redução da maioridade penal e pelo clamor – leia-se gritaria –, por punições cada vez mais rígidas, como a pena de morte. 
Imagem: Cartum de Motoka
A necessidade de se rediscutir o tema está posta. Na Argentina o projeto que descriminaliza a realização do procedimento em mulheres grávidas com até 14 semanas de gestação passou na Câmara de deputados e está no Senado, com previsão de ser votado no quarta 08/08. Por lá, há expectativa de que não se aprove por diferença pequena entre os senadores – 32 votos a 28 contrários, com 11 indecisos, a descriminalização. Por aqui, idem. A maioria do Supremo não deve acatar o pedido da legenda socialista. E mesmo que reconheça a inconstitucionalidade dos itens, a mudança de entendimento poderia vir – e certamente viria – a ser questionado por não ser competência do Judiciário se debruçar sobre o tema da forma que vem fazendo.

Demanda antiga da sociedade, especialmente no que tange os artigos relacionados à violência, cabe ao Legislativo rever e atualizar pontos do Código Penal brasileiro, lançado em 1940 pelo Decreto-lei 2848/40.

Em se tratando do aborto, o crescimento do conservadorismo puxado pela presença bancadas religiosas, principalmente cristã, no Congresso impede que o assunto seja amplamente discutido e dificilmente será alterado. O conflito de interesses que, em parte, constitui-se pelo fanatismo religioso e, em parte, pelos vínculos econômicos que envolvem parlamentares de tal seguimento. Aliás, esta é uma das muitas dicotomias vedadas pela Constituição de 1988 que prevê a Laicidade do Estado.

Tanto o PSOL quanto os movimentos que defendem a proposta de descriminalização do aborto pelo STF sabem que, em caso de vitória, a liberação da prática não viria acompanhada de programas de conscientização para se evitar o aborto. Políticas no sentido de se evitar a gravidez indesejada, por exemplo, só poderiam ser incluídas em um eventual projeto de lei.

Eles devem ter ciência – e acredito que tenham – de que, qual seja a decisão do STF, a mudança efetiva passa pelo Congresso Nacional que, a depender do resultado das eleições de outubro, passará ou não por renovação. Que a renovação venha e passe por mais lenços verdes e menos vermelho sangue.


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Claudio Porto

Jornalista independente.

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1 comments so far,Add yours

  1. Belo texto Claudio, eu entendo que sim, esta é uma questão, tanto pelo âmbito social, pouco debatido, quanto pela questão da sobrevivência da mãe no procedimento médico, que evidentemente precisa ser encarada de forma séria e sem os dogmas que vemos.

    Eu apenas acrescentaria, que o modelo a ser discutido em projeto de lei no Brasil, a meu ver, seria o ideal como é no Uruguai, com conscientização, com APOIO DO ESTADO para que a mãe tenha chance de escolher não-abortar e caso não seja suficiente para demover da ideia, aí sim o aborto.

    Aliás, o Uruguai que nos tempos de Mujica implementou tantos avanços tem muito a ensinar ao Brasil, vejamos se nas eleições um candidato progressista vence, para permitir que ao menos se cogitem tais avanços.

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