“Eu também já fui poeta / Bastava olhar para mulher / pensava logo nas
estrelas / e outros substantivos celestes”
Assim que Itabira, no interior das Minas Gerais, gerou no
início do século de temor incessante e banalização da morte, o séc. XX, aquele
que viria a ser convidado por “um anjo
torto / desses que vivem na sombra” a “ser
gauche na vida”, o universo literário brasileiro, à época personificado em
Machado de Assis e seu, entre outras obras, Dom
Casmurro, não imaginava que a classe poética e crônica testemunharia, no mais estrito particular, a vida daquele que escreveu em prosa, mas marcou
mesmo na poesia.
O pai de as “Sem-razões
do Amor”, “Também já fui brasileiro”,
“Europa, França e Bahia”, “A Flor e a Náusea”, “Quadrilha” e mais outras grandes
intervenções poéticas, Carlos Drummond de Andrade, o velho Drummond, cedeu 85
de seus 85 anos à vida jornalística, lírica e crônica transcrevendo a história
do século XX como sendo um “rio profundo,
caudaloso, inarredável, com suas ondas de enigma e transparência, fogo e
palavra, promessa e desencanto”, segundo Marco Lucchesi, poeta e autor do
prefácio de “Antologia poética”,
reunião de poemas e correspondências de Drummond.
Como nascente deste rio, o Diário de Minas abriu as portas de sua redação e a páginas de suas
publicações para o itabirense, que já na capital mineira tecia artigos até o
encontro com seus pares, malhados por conta da Semana de Arte Moderna de 1922, Oswald de Andrade, Tarsila do
Amaral e seu mentor literário, Mario de Andrade, com quem manteve contato até
este “descer aos infernos” (título de
um poema de Drummond em “A rosa do povo”,
publicado após a morte de Mario em fevereiro de 1945). Drummond fazia uma
espécie de meio-campo, um segundo volante, “o de saída” do futebol
contemporâneo, entre os modernistas e os conservadores, ainda oligarcas da
República Velha, que não suportavam assistir a renovação artística e literária
proveniente da Semana de 1922. Ele
transitava pelos dois polos de interesses com leveza, como manda o estereótipo
mineiro.
“No meio do caminho
tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho”, assim Drummond
chegou à São Paulo pela Revista de
Antropofagia, em 1928, murmurando das muitas “pedras” soltas, parte
intencionais, em seu caminho lírico. Dali em diante, o poeta mineiro deslanchou no
cenário nacional. Lançou Alguma poesia, seu primeiro livro, enquanto o Brasil vivia a revolução que retirou o “Velho” da República, em 1930, e assumiu a
chefia de gabinete do ministro da Educação de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema,
em 1934.
Um lado da história contesta a modernidade enquanto
característica marcante de suas obras. Roberto Said, professor e mestre em
Letras pela UFMG, e autor do livro “A angústia da ação: poesia e política”,
lançado em 2005, após compilar cartas do período transitório da República Velha
e a República de Vargas, desenha um Carlos Drummond político que, por conta do
contexto, participava do governo ditatorial instalado no pós-revolução. Mesmo
tendo renegado a sua participação, o documentos apresentados pela obra de Said
mostram Drummond na autoria de muitos discursos e usando-se de sua posição
pública para, por meio de subvenção financeira, apoiar o cenário artístico e
literário modernista.
Do outro lado há quem diga que ele já, naquela época, se
inclinava ao socialismo pelo qual lutaria em suas crônicas, dissimulada e, por
vezes, ironicamente, no Jornal do Brasil (JB)
entre os anos de 1969 e 1984, em meio ao Regime Militar.
Aproveitando-se dos anos de chumbo e da oportunidade dada
pelo JB, Drummond colocou todas as suas
utopias políticas para fora, incluindo uma reforma política melhor, quanto ao
senso crítico e criativo, que a proposta pelo atual Congresso Nacional. Em seu
primeiro artigo no jornal, em 2 de outubro de 1969, Drummond tece extenso comentário aos
leilões de indiscriminados objetos, em alguns casos, nem de objetos
poderiam ser nomeados. Tal qual hoje, comparando as movimentações
políticas em “reformar”, Drummond garante, já no título, que o modus operandi
era capaz de promover o “Leilão do ar”.
Na coluna de 14 de abril de 1977, dia seguinte a decisão do
presidente general Ernesto Geisel em alterar a metodologia na escolha de
senadores federais (parte das cadeiras seria ocupada por integrantes de uma
lista proposta pelos militares e a outra por voto popular), Drummond diz que a
melhor saída seria regular o período de cada mandato por diária. A figura
política seria submetida à avaliação e votação diariamente. “Os mandatos
teriam a duração exemplar de 24 horas, o que eliminaria angústias e infartos, e
poderiam ser, não digo cassados, pois julgo a expressão extremamente
antipática, mas revogados, caso no fluir dos minutos o eleitor achasse que
fizera má escolha”, escreveu Drummond.
Carlos Drummond encerrou sua bela participação jornalística em
1984. Três anos depois, já tomado por doenças cardíacas, ele morreu no Rio de
Janeiro, em 17 de agosto de 1987.
O ano de 2017 rememora três décadas sem Drummond. Trinta
anos sem a presença física de um mestre que transcendeu a antologia e nos
chamou a observar o além. Talvez não com a possibilidade, muito remota, de
alterar o sistema político para uma vigilância 24 horas. Mas na crença de que o
ser crítico, quando aliado ao lirismo, é capaz de marcar a história e o tempo.
São três décadas que, com certeza, vão além.
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