Completou 100 anos, esta semana, em 29/03, o texto conhecido como "Oração aos Moços" de Rui Barbosa. O texto fora originalmente escrito pelo renomado jurista por força de convite - por si declinado, por questões de saúde - para ser paraninfo da turma de formandos da faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo. O documento tomou tamanha repercussão que fora publicado e republicado por diversas editoras desde então, de sorte a tornar-se verdadeiro clássico da literatura jurídica nacional. Não à toa, todo e qualquer operador do Direito tem ao menos conhecimento da existência de tal obra. Pois bem... o que dizer sobre este fato?      

 


Inicialmente, cumpre referir que o texto redigido pelo aludido jurisconsulto endereçava-se, justamente, a novos futuros advogados. Neste sentido, é natural ler-se nele mensagens aos vindouros profissionais do Direito, como, por exemplo, as que se destacaram ao longo do tempo, conforme a seguir: "Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta"; "não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura"; ou, ainda, "Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis."


Sem dúvidas, estas são muito importantes lições a serem transmitidas e introspectadas por todo e qualquer estudante que deseje ingressar neste hoje definitivamente nada tão seleto universo, o dos advogados no Brasil. Ocorre, contudo, que, como destacamos no início, fazem, hoje, cem anos desde que Rui Barbosa redigiu sua mensagem aos novos advogados. A (nossa) realidade, contudo, se modificou em nosso país e, arrisco a dizer: para pior!


Para além de questionarmos as inclinações políticas e ideológicas de Rui Barbosa, no intuito de compreendê-lo em toda sua integralidade, eu hoje quero falar com vocês em primeira pessoa. Quero dialogar, mesmo que à distância, especialmente com aqueles que aspiram à nobre, embora não mais tão valorizada carreira de advogado nesta nação. Para tanto, me reporto novamente à obra em comento, apenas para dizer, como o fez o aludido jurista, que minha fala deve ser tomada, por vós, como se presencial fosse, como estivéssemos, nós, lado-a-lado, não apenas em um diálogo presencial, mas de braços dados na luta que abaixo irei lhes transcrever.[1]

E tendo dito isso, lhes convido à reflexão real sobre o atual dever e incumbência do advogado em nosso tempo. Sim, por certo ainda temos o compromisso para com a justiça e etc, mas... mais do que isso, penso eu e explico, pelo que nomearei aqui de "(minha) oração (e/ou, por que não, manifesto) aos advogados e estudantes de direito":

Comecemos assim, caros e futuros colegas: de minha parte, logrei obter registro na OAB/SC no ano de 2015, sob o número 43.457, e eis que 5 anos depois - ou, se preferirem, em exatos 100 anos depois que Rui Barbosa falou, em certo sentido, também a vós - eu recebi, em meu escritório, não um cliente, mas uma advogada. Em sua mensagem, chamou-me, de pronto, a atenção, o seu clamor: requereu-me, a jovem colega, que ENCARECIDAMENTE lesse o seu currículo. Isso espelha, por certo, a situação dos advogados em nosso país e é dela que desejo falar, sem necessariamente apegar-me apenas ao caso da pretendente em questão. O que me chamou a atenção não fora apenas o seu aparente desespero em ocupar vaga em nosso modesto, ainda que sobrevivente, escritório. Fora, sim, o seu número de inscrição na OAB. Seu número ultrapassava a ordem dos 60 mil. De pronto, tomei-me de assombro, com uma simples operação matemática, donde, subtraindo o meu número de registro do seu, tomei a infeliz consciência de que, nestes cinco anos, desde que ingressei nesta profissão, somaram-se a nós nada menos do que dezesseis mil e quinhentos novos profissionais apenas em nosso Estado. Isso significa, senhores, que, a cada ano, apenas em Santa Catarina, formam-se e passam a integrar os nossos quadros quase quatro mil novos advogados todo ano! Pois bem... neste instante lhes deve estar passando pelas cabeças: no que isso implica e o que fazer quanto a isso?



Lhes digo: vivemos em um Estado Liberal burguês, onde a liberdade é de poucos, para oprimir muitos - a classe trabalhadora, no caso.

Neste sentido, "lei da oferta e demanda" acrescida a exército de reserva dos desempregados, resulta em precarização das condições de trabalho, pois não?

Mas e daí?

E aí, meus amigos, que a OAB é, de longe, o órgão de representação de classe mais caro do país. Aos formados de outras áreas, me digam: quanto pagam a seus respectivos órgãos? Pois pasmem, novos operadores do Direito: no Estado de Santa Catarina, os advogados contribuem anualmente com mais de mil reais!

Dito isso, lhes pergunto: para que pagamos tudo isso e o que este fato tem a ver com que falávamos até então?

Bem... aí vem a questão: se a tendência de um mercado inflado e pautado pelo liberalismo burguês é diminuir direitos da classe trabalhadora, então é dever dos órgãos de proteção garantir que (ao menos) o mínimo de dignidade seja mantido a cada profissional, correto? Pois se assim o é, então saibam: A OAB até hoje simplesmente jamais estabeleceu coisas como um piso salarial aos advogados!

E não é só isso: escritório de advocacia não é padaria, onde os transeuntes entram para comprar quando passam pela rua, por ser a panificadora mais próxima ou por sentirem-se atraídos pelo aroma de pão quentinho. Logo, abrir um escritório exigiria capital e tempo, o que não é a realidade da imensa maioria dos recém formados. Por outro lado, alguém acaso sabe como um advogado é contratado por algum escritório? Pois eu lhes conto: pode ser pela CLT, mas... também pode ser como associado ou sócio minoritário.

E o que é isso?

Explico: associado ou sócio minoritário é, em regra, um membro da sociedade advocatícia que, na qualidade de tal, divide, hipoteticamente, os resultados da mesma. Na prática, porém, os associados nunca ganham mais do que o mínimo, com um diferencial!!

Conseguem adivinhar qual é?

Pode parecer óbvio, mas....... os "sócios minoritários" ou os "associados" NÃO SÃO EMPREGADOS, logo...... não gozam de NENHUMA garantia trabalhista!!!

O que isso significa, na prática?

Isso implica em que os advogados, em geral, 1- não tem salário mínimo; 2- não tem férias remuneradas; 3- não tem gratificação natalina (13º salário); 4- não tem FGTS; 5- não tem aposentadoria; 6- não tem limite de horas semanais de trabalho. São, em suma, escravos!

Poderiam nos dizer: "tá, mas... então por que ninguém reclama ou faz alguma coisa?" ou "Por que a OAB não toma parte nisso?" Bem, jovens mancebos, deixem-me contar duas coisas:

1- A OAB é uma instituição liberal burguesa, derivada do Estado burguês em que vivemos. Logo, esperar que a mesma defenda a classe trabalhadora que ela diz representar - em sentido contrário à noção de liberdade que o liberalismo prega, enquanto promove e incentiva a total submissão de muitos, em prol de poucos - seria ingenuidade, no mínimo incompatível aos que desejam, para si - mesmo que imerecidamente - o título de "doutores". A OAB, como instituição liberal que é, serve aos grandes escritórios, que lucram, justamente, com a opressão de seus pares, e nada mais.

2- Acreditem ou não, mas o mundo é muito maior e muito mais complexo do que aquele que lhes foi apresentado durante os 5 anos da graduação. Assim, devo lhes dizer: na prática, a faculdade de direito, da qual são egressos, foi, e é, na verdade e acima de tudo, antes de uma simples instituição de ensino, um grandessíssimo sistema de PROPAGANDA do Estado Burguês e de sua Estrutura jurídica LIBERAL.[2] Assim, caros colegas, quem se forma em Direito e não pensa e estuda fora da caixa, (pasme) sai não graduado, mas, sim, doutrinado em liberalismo e pronto a defender não os direitos das pessoas, mas, paradoxalmente, as grandes estruturas que os oprimem - a si e aos próprios clientes, cujo dever era proteger!

As consequências disso? Uma massa de sub/desempregados sem consciência de classe que 1- ou aceitam qualquer coisa em troca de dinheiro para não morrer de fome - mesmo tendo estudado durante anos para estar ali; ou 2- integram uma massa de concurseiros (igualmente frustrada, em sua maioria) que 2.1 ou vive literalmente na merda; ou 2.2 passa em um concurso sem qualquer vocação para o exercício da profissão, tornando-se, assim, um péssimo profissional!


"Ok", me diriam, mas... "o que fazer neste cenário"?

Pois bem... Lhes digo: o caminho não é fácil e tampouco curto. O primeiro passo, contudo, é ter consciência do que aqui foi dito - na hora de escolher o curso e de ingressar neste nicho do mercado de trabalho. A partir disso, recomendo:

1- não faça direito para ficar rico - porque você não vai!
2- Se já ingressou na carreira e não está disposto a desistir tão fácil, então... dica: organize-se! Faça-se presente na OAB. Exija seus direitos e dos demais trabalhadores do direito iguais a você!
3- Não limite sua militância apenas à advocacia. Essa luta é contra o sistema como um todo, que permite a opressão e a institucionaliza e defende. Assim, junte-se a outros trabalhadores já conscientes; conscientize os que ainda não estão; e lute!

Você fez/faz Direito para fazer (e garantir) direito(s), e não para ser oprimido e calar!

Ou isso, ou você não merece mesmo a alcunha que recebe:

"Ad vocatus", do latim, "aquele que é chamado para defender!"

Em suma: ADVOGADOS, UNI-VOS!




Abraços advocatícios e revolucionários!

Até a próxima!

[1]Recomendo que leiam a obra na íntegra. Nela, dentre outros, Rui Barbosa apresenta suas escusas pela impossibilidade de se fazer presente no evento para o qual foi convidado. Sua fala é tão bela que me abstenho de reproduzi-la, pois devo dizer: ninguém é capaz de sequer parafraseá-la!

[2] Recomendo, aos que ainda pensam que liberalismo tem a ver com liberdade, que leiam o livro "A Contra história do Liberalismo", de Domenico Losurdo, em que o historiador se presta a demonstrar, justamente, que, o que se conhece por "liberalismo" sempre esteve, em verdade, atrelado a práticas completamente avessas à qualquer noção de liberdade, como, por exemplo, a escravidão.
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Guilherme Azevedo

Advogado e Filósofo, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) com dupla titulação em Estudos Políticos pela Universidad de Caldas/Colômbia.

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