Terminou, esta semana, o caso mais antigo, ainda em trâmite, na justiça nacional ̶ que meus clientes não leiam isso, pois podem pensar que se trata dos seus processos (risos).


Tratou-se de nada mais, nada menos que uma ação possessória ajuizada em 1895, por, ninguém mais, ninguém menos que a Princesa Isabel e seu "marido"!



OBS.: Clientes e amigos... quando digo que a justiça é morosa, é a isso que me refiro!

Brincadeiras à parte, o caso é simples: com a queda da monarquia e a tomada do palácio da Guanabara pela União, a princesa, à época possuidora do imóvel, entendeu por bem requerê-lo através do próprio sistema que a afastara. Em termos populares, "botou o Estado no pau", exigindo o imóvel de volta ou um pagamento/indenização proporcional.


OBS.2: Aos desavisados, a princesa Isabel finou-se, mas seus herdeiros seguiram com a ação, na qualidade de tais; logo, não há que se falar em "perda de objeto" pelo seu falecimento.

Em sendo proprietários, os membros da família real, sob a égide das leis atuais, teriam, com efeito, o direito à retomada ou à pagamento compatível com o valor do bem desapropriado. A decisão dos tribunais, contudo, fora em sentido contrário, sob o argumento de que os monarcas não eram proprietários do bem, mas tão somente possuidores, assim declarados em razão de lei editada ainda à época do Brasil império, e que justamente lhe concedia o aludido direito à habitação.
De toda sorte, soa curiosa a situação em que o proprietário despeja o usufrutuário, possuidor direto do imóvel, com uso de força bruta e este nada pode fazer a respeito.

Mais curiosa ainda é, todavia, a situação onde a monarquia (e seus sucessores) sente na pele o que passam os demais conterrâneos. Explico:

O governo Bolsonaro vetou recentemente artigo de um Projeto de Lei aprovado pelo congresso que estabelecia, basicamente, que, com justeza, seria vedado, enquanto durasse a pandemia, despejar inquilinos em razão de atraso no pagamento de alugueis. O pior de tudo é que o Congresso acatou o veto, sob a justificativa de que não seria interessante, à nação como um todo, criar conflitos com o Executivo Nacional ̶ que, diga-se: é especialista, ele próprio, em criar conflitos! Um absurdo inacreditável, não fosse o fato de estarmos falando do (des)governo de Bolsonaro.


Pois relativamente ao "despejo" da monarca, penso o contrário: acredito ser válida a desapropriação de bens toda vez que em prol do interesse público. A própria lei de desapropriação assim autoriza, mediante justa contraprestação, e desde que sob a égide de tal premissa, qual seja, o interesse de todos, o bem comum.

Assim, para além de refletirmos se é o caso de a família real merecer alguma indenização pelo uso da força bruta, a questão a refletir é: o mesmo não deveria valer para toda e qualquer propriedade que pudéssemos dizer "interessante" ao bem de todos?

O termo "bem comum" é deveras abstrato, mas poderíamos substituí-lo, ao menos, pela ideia de "garantia dos direitos fundamentais de todos os cidadãos", pois, por certo que aquilo que me é devido pela minha própria condição de humano (e de cidadão) talvez não interesse particularmente aos demais, mas certamente está no rol de obrigações do Estado. Assim, é legítima (e legal - ver DL 3365/41) a desapropriação de bens alheios(particulares) pelo Estado toda vez que necessários ao cumprimento dos deveres estatais para com a sociedade como um todo e, destarte, a cada cidadão, individualmente.

Ora, pois... o direito à moradia está elencado como um dos direitos sociais de todos os cidadãos, conforme artigo 6º de nossa vigente Constituição. De outra banda, consta, no mesmo texto constitucional, que toda propriedade deve servir à sua função social. A noção de "função social" pode ser matéria de um debate mais aprofundado, cujo significado não seja tão fácil de aferir. De todo modo, como em boa parte de todos os procedimentos interpretativos, se não temos um sentido preciso e definitivo para cada termo, temos, ao menos, na maioria das vezes, alguns significados que, de pronto, simples e definitivamente não se adequam ao que almejamos interpretar. Assim, um imóvel situado em zona residencial, com características compatíveis com tal finalidade, é(deve ser empregado), senão, (como) uma residência, sendo, portanto, esta, e não outra, a sua finalidade. Disso conclui-se que, em não servindo; sendo utilizado para fins residenciais, não cumpre com sua função social.

Bem... a partir das recém referidas constatações, basta unir uma coisa à outra para concluir que o mais certo a fazer (no sentido de mais adequado aos ditames constitucionais e, ademais, o mais justo) é: desapropriar imóveis residenciais desocupados (e/ou mesmo aqueles que, não sendo residenciais em sua origem, encontrem-se, de todo modo, desocupados e, portanto, sem qualquer finalidade) para fins de empregá-lo em tal função, atendendo ao direito de moradia daqueles que não a tem.

Se assim o é e a nós transparece como cristalina esta questão, então porque as medidas necessárias para tanto simplesmente não são tomadas na prática?

Respondo: você talvez não perceba, mas, enquanto escuta em silêncio os brados de "nem direita, nem esquerda", o Estado já tomou posição e não é à favor da população em geral. Explico.

Em casos como o exposto acima, temos um exemplo de interesses (legalmente reconhecidos) conflitantes. Com efeito, a moradia está prevista como direito de todos. A propriedade, porém, também está. Assim, há que se optar por um em detrimento do outro e, neste sentido, é necessário, sempre, um critério e, com ele, uma decisão. Neste sentido, quando o Estado prioriza o direito da propriedade, essa priorização deve ser entendida como uma tomada de posição, em que se diz (mesmo que nas entrelinhas) que o direito de ser "dono" das coisas é maior/mais importante que o direito a morar com dignidade.

Exemplos de tal priorização chovem diariamente nos noticiários (sem contar aqueles que permanecem na escuridão dos múltiplos processos que, sem repercussão nacional, conservam-se em silenciosa, porém não menos fatídica "injustiça sócio-judicial").

Ainda ontem falávamos sobre o absurdo caso em que, mesmo em meio à pandemia, o acampamento dos sem terra (MST) sofreu despejo, autorizado judicialmente, para a garantia do (sagrado) direito à propriedade (mesmo que tenham sido eles os que justamente concediam, à terra em questão, a sua devida finalidade produtiva e social).



Muitos outros exemplos podem ser dados acerca daquilo que, em nosso Direito, não podemos ver - por não estar escrito em lugar nenhum -, mas cujos ditames, ainda que silenciosos, determinam, ao fim, os rumos de nossa nação.

A própria aplicação das normas Constitucionais é enviesada. O direito à saúde, por exemplo, é garantido, mas, na prática, diz-se: "na medida do possível", enquanto os altos salários de congressistas e magistrados "pinga" (ou, por que não, jorra) sagradamente todos os meses na conta de seus respectivos beneficiários.

Quanto à propriedade, essa não. Essa é sagrada, sendo a sua defesa irrestrita.


Basta que pensemos no caso de um cidadão enfermo que necessite de tratamento médico emergencial e/ou demasiado específico para ser atendido pelo (propositalmente) sucateado sistema de saúde pública. A propriedade do hospital particular jamais seria posta em questão para atender os direitos deste cidadão. Não à toa, pouco se falou acerca da hipótese de "fila única" dos hospitais (públicos e privados) no atendimento dos pacientes contaminados por COVID. Chegou-se ao absurdo de os próprios Estados partirem em defesa dos hospitais privados ao recorrerem ao STF, para fins de impedir a hipótese de realização de uma fila única!!!!

Disso tudo resulta que, para além das injustiças que podem ser prontamente evidenciadas em cada qual das situações narradas acima, fica nítido o fato de que o Estado tem (e já escolheu, desde sempre) um lado.

A questão passa a ser então de que lado nós, cidadãos, vamos nos posicionar.

Se contra, ou a favor de nós mesmos.

Vale dizer: quem fica em cima do muro, escolhe o lado de quem é dono da casa, pois, lembremo-nos, o muro, até segunda ordem, pertence ao dono da mesma e, destarte, quem nele se coloca, só está aí porque lhe é confortável e porque, ademais, o dono (do muro e da casa) até então assim o permitiu.


Concluo dizendo: abstraindo-se eventual discussão acerca do direito real de indenização, a desapropriação da família real em prol do bem comum é legítima e emblemática. Não apenas porque se trata de uma desapropriação em prol do bem comum, mas porque foi contra (e não a favor ou por meio d)o establishment em questão.

Lutemos para que este fatídico exemplo se repita, em todos os casos onde conflitam a propriedade daqueles que não precisam e os direitos básicos de cada cidadão, se bem que, espero, com uma duração de processo um tanto (bastante) menor!


P.S.: Nem mesmo John Locke, por muitos considerado como (senão o pai, então) o avô do liberalismo, defendia o direito irrestrito à propriedade. Em seu mais celebrado escrito a este respeito, destaca, ao contrário, que o direito à propriedade deriva do direito natural que todos nós temos de possuir os nossos próprios corpos, de sorte a que toda parte da natureza que tenhamos alterado por força do emprego de nossas forças corporais, deve, por extensão, ser considerada também como propriedade nossa. Veja que mesmo em Locke, a propriedade está intimamente ligada ao trabalho. Diga-se: quem tem direito de ser dono é quem trabalha, lê-se: o trabalhador. De qualquer sorte, ele ainda adverte: o direito à propriedade não é irrestrito, mas, ao revés, deve ser limitado às necessidades de cada um, pois, conforme dispõe, Deus fez o mundo para usufruirmos e não para esbanjarmos e/ou desperdiçar.[1]


[1]Neste sentido, ver:  LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Tradução de Marsely de Marco Dantas. 1ª Edição, São Paulo: EDIPRO, 2014, especialmente p. 43 a 46.  
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Guilherme Azevedo

Advogado e Filósofo, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) com dupla titulação em Estudos Políticos pela Universidad de Caldas/Colômbia.

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