Você já ouviu alguém ironizando o fato de um comunista estar comendo um lanche no Mc Donalds, ou usufruindo de tecnologia, como se isso fosse uma contradição? Antes de tudo, todos precisamos lembrar que hambúrgueres e celulares são produzidos em linhas de montagens, por trabalhadores, e que a ciência soviética descobriu como cultivar em condições adversas e como lançar o primeiro satélite, orbitando a Terra. É certo que se espera um pouco mais de bom gosto na alimentação de um cidadão da esquerda, mas o capitalismo é uma forma econômica em vigor, não se vive em um país que esteja a um meio-termo quanto a isso. Não é como um time de futebol, que você pode escolher, é algo que está aí. Podemos ser militantes, estudiosos, simpatizantes, dirigentes sindicais e afiliados a partidos políticos, mas vivemos em uma sociedade capitalista. Você pode lutar contra o capitalismo, mas não pode viver o socialismo dentro do capitalismo.



Voltemos ao lanche de minhoca tentando responder a duas perguntas, por quê um socialista não pode comer isso, e já que não pode, quais os lugares que ele pode? Veremos que para as duas perguntas não há respostas que não terminem em contradições. Qualquer trabalhador tem o direito de escolher o que vai comer. Nada, além de um moralismo besta, pode impedir ou tornar estranha essa atitude. Por fim, no socialismo as pessoas também comem lanches, bons e ruins. O trabalho no Mc Donalds é daqueles simbólicos, exageradamente explorado (pesquisem). Contra toda dificuldade, seu funcionário deveria ter direito a organização, direito de greve, mobilização, apoio e solidariedade da sociedade e dos outros trabalhadores. Há trabalhadores em condições piores e melhores, mas todos sob o regime capitalista, que lhes retira sua produção. A situação desse chapeiro, dos cobradores de ônibus, dos metalúrgicos e camelôs, só deve mudar estruturalmente com a chegada de uma outra forma de organização da sociedade. Um boicote ou atitude individual moralista levará essa situação a um paradoxo, pois se eu me recuso a beber Coca-Cola, por que deveria utilizar o Uber, ter conta em banco privado, usar tênis produzido por escravos no sul da Ásia ou jogar futebol com bola feita no Paquistão? Deixo de usar uma calça da Levi´s, mas posso tomar cachaça do interior de São Paulo, destilada de cana colhida por boias-frias?

Se você acha que empregadas domésticas têm o direito de viajar de avião, pelo caminho lógico, deveria pensar que qualquer trabalhador, e a própria empregada, têm o direito de comer filé, em detrimento do bife de acém. Já se perguntou os motivos de a sociedade entender como saudável a austeridade familiar nos “gastos”? Deveríamos ter uma vida muito regrada, sem excessos nem delícias. Eles condenam o cafezinho, dão sempre o exemplo desse produto, que é dos mais baratos, para dizer que você está gastando dinheiro, o dinheiro das contas que tem que pagar, o dinheiro de sua aposentadoria. Suas férias devem ser na Praia Grande e não em Paris. Sua pizza feita em casa, a cerveja mais barata, restaurante além de luxo, é preguiça, churrasco de segunda. Isso não é estranho? Você já bebeu uísque irlandês? Não? Pois não sabe o que está perdendo. O uísque, salmão, as roupas de grife, confortáveis tênis de corrida, os melhores charutos, são produzidos, tecidos, planejados, operados e pescados por trabalhadores. Então, porque ele seria moralmente proibido de usufruir disso?

A miséria não combina com o socialismo, pois é exatamente contra ela que ele luta. Socialismo é acesso a todos, não miséria para todos. Se você vê como normais as privações da classe trabalhadora, e concorda que ela deva ser austera, há algo disfuncional em seu sentido de igualdade. Quem gosta de pobreza é o capitalista, pois ele vive dela, e vive muito bem.

No socialismo, o trabalhador deve ficar com o valor de seu trabalho, portanto também com todos os produtos que a classe produz. No capitalismo, ele mal fica com um salário, deixando o consumo justamente com quem não produz.

Convicções individuais são as características que diferem umas pessoas das outras, e são formadas de acordo com nossa maturidade e aprendizagem. Bem podemos ficar atentos para não propagandear justamente o contrário de nossos sentimentos.

Sobre a coluna

A coluna Tripalium (conheça: http://tripalium.com.br/) é publicada a cada 15 dias.
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Cauê Borges

Cauê estuda o mundo do trabalho, do ponto de vista do trabalhador, e as contradições da forma capitalista de produção. Foi operário no ABC Paulista, e cursou Economia na Fundação Santo André. Tem dois livros publicados, “Jean-Jacques Rousseau” – 2013 (Coleção Filosofinhos – Tomo Editorial), e “Contos de Trabalho, Capital e Cotidiano” – 2015 (Tripalium).

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