Não importa o contexto, o lance é bolar qualquer frase sem nexo, para conseguir encaixar algumas palavras que são moda. É comichão vinda de dentro para fora, feito a necessidade que as pessoas da classe média têm de visitarem a Disneylândia.


“Gratidão!” E pronto! Isso mesmo, essa fofura é usada para responder a perguntas, opinar, se expressar. É dita assim, solta, perdida, sozinha, no lugar de uma frase. Gratidão virou um mantra da pieguice.

A imprensa corporativa tem das suas também. Apresentadores agora são obrigados a dizer, antes da “notícia”, a isca “olha só...”, provavelmente para chamar a atenção do distraído espectador ou ouvinte. E também estão proibidos “antes do almoço”, “pela manhã”, “hoje à tarde”, e expressões mais precisas, variadas e naturais, pois foram substituídas por um pobre e artificial “mais cedo”.

Palavra é política. Um trabalhador não pode dizer “resiliência”, ela é nossa inimiga, e vai pelo mesmo caminho de sua prima “foco”. Foi plantada no início dos anos 2000 e ainda é ruminada com gosto não só pelo capital, mas também por suas vítimas. Não se trata de incentivar um maratonista a continuar sua corrida, estudar bastante para o vestibular, ou tentar novamente fazer aquele pudim que nunca dá certo. Embutir essa ideia na cabeça do povo é propagar a mensagem de que se você levanta ainda na madrugada para trabalhar, é ensacado em um ônibus lotado, ou enlatado no trem ou metrô, foge de suas funções para executar todo e qualquer trabalho, passa por todas as dificuldades que passa a classe trabalhadora para produzir a riqueza do patrão, e volta para casa trazendo um salário insuficiente, isso é sinal de resiliência, tenha resiliência, seja forte, você pode. Um dia, um dia tudo vai mudar. Mas, enquanto isso, seja resiliente, e sobretudo, não reclame. É aí que eles querem chegar.

Há fetiches que revelam um caipirismo deslumbrado, como a intenção de dizer termos estrangeiros com o próprio sotaque estrangeiro. O que demonstra uma necessidade de submissão sem sentido. Agora é feio dizer “uáti zapi”, a pronúncia admirável é “uóts ap”. Os bem entendidos “beleza”, “tudo bem”, “tá certo”, “confirmado” e gírias como “firmeza”, são evitados em nome do artificialismo do “ok”, que deve ser dito “óquei”. No caso de “spoiler” (cidadão que profere essa palavra, invariavelmente mostra um sorriso de satisfação, por consegui-la encaixar mais uma vez no dia), a desculpa é dizer que não há um correlativo em português. Ah, não? E como se dizia isso no ano passado, então?

Nada a ver com ser avesso à constante mudança da língua. Mas essa estratégia é artificial, vem de organizações, é criada em laboratório, normalmente em um ambiente de notória falta de inteligência e sensibilidade - o mundo corporativo. A questão transcende a preferência, conservadorismo linguístico ou resistência nacionalista. O problema é a má intenção do capital, a armadilha para fazer crer que o miserável trabalhador “joga no mesmo time” do patrão, deve “vestir a camisa”, pois estão “todos no mesmo barco”.

Quando se fala da empresa em que trabalha, muitos trabalhadores usam o termo “nós”, ou “a gente”, fazendo crer a si mesmos que aquilo tudo é seu também. Daí surgirem frases patéticas como “vamos inaugurar uma nova planta”. E foi essa turma quem instituiu no vocabulário o termo “colaborador”, em uma situação impossível que é a de sinônimo de trabalhador. Colaboradores esses que não são despedidos, já que não têm empregos, são “desligados”.

Criaram também alguns sinônimos para “desempregado”, como “empreendedor digital”, “coaching” ou apenas “empreendedor”. Além de rótulos que são contradições insolúveis em si mesmos, como “anarco-capitalismo”, que seria uma espécie de “palmeirense-corinthiano” e onde se percebe o capitalismo, mas não o “anarco”.

A esquerda também sofre disso? Termos como “empoderamento”, “rede”, “lugar de fala” e “sororidade”, desde que sejam caçados para adornarem uma frase, ou estejam sempre na ponta da língua apenas por estar, mostram que ao menos a esquerda pequeno-burguesa, sim, sofre. Essas palavras invadiram nossos ouvidos da noite para o dia, e não raro, montadas em textos aleatórios. Aliás, falemos baixo, mas a esquerda adorou e adotou a coisa sem graça do gratuito “gratidão”.

A besteira atual, superando a antecessora “inspiradora”, parece ser a palavra “disruptiva”. Portanto, se você utiliza alguma delas, pare com as drogas. Seres-humanos são parte de um só gênero, mas a personalidade nos distingue. Copiar os comportamentos de maneira artificial e forçada, nos retira nosso próprio ser e nosso “não-ser-o-outro”, deixando todo mundo tristemente igual. Tornar a sociedade uniforme é deixar tudo com a mesma cor (que é o cinza), e realizar nas pessoas a intenção de padronização almejada pelas corporações, a padronização por baixo. Eles dizem o que devemos comer, comprar, usar. Que tal nós mesmos decidirmos o que queremos falar?

Sobre a coluna

A coluna Tripalium (conheça: http://tripalium.com.br/) é publicada a cada 15 dias.
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Cauê Borges

Cauê estuda o mundo do trabalho, do ponto de vista do trabalhador, e as contradições da forma capitalista de produção. Foi operário no ABC Paulista, e cursou Economia na Fundação Santo André. Tem dois livros publicados, “Jean-Jacques Rousseau” – 2013 (Coleção Filosofinhos – Tomo Editorial), e “Contos de Trabalho, Capital e Cotidiano” – 2015 (Tripalium).

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