Propostas de mudanças chegam em meio ao desgaste do (des)governo Bolsonaro com a queda de aliado; áudios de “zap” aterrorizam o presidente eleito graças à plataforma

Há pouco mais de um ano, no dia 15 de fevereiro de 2018, este articulista escreveu neste JC que “mexer na aposentadoria é mais uma farsa do (des)governo”, à época comandado por Michel Temer. É sabido que de lá para cá muita água e lama passaram sob as pontes brasileiras. Em São Paulo, pior, veículos e trens passaram debaixo das pontes e viadutos precários da maior cidade da América do Sul, atualmente administrada por tucanos da laia Doriana, um derivante de João Dória – que saltou com calça de pular brejo e camiseta do programa Cidade Limpa, que lhe rendeu condenação em primeira instância, da condição de prefeito-fujão à governador do estado. Antes fugir, deixou a contrarreforma da Previdência Municipal para ser votada pelos vereadores.
Charge: Renato Machado
Sob bombas e balas de borracha, milhares de servidores públicos se instalaram em frente à Câmara para impedir o avanço do pacote de mudanças no sistema previdenciário. Conseguiram, ainda que por seis meses, a suspensão da tramitação da proposta que, em movimento esperto dos vereadores, voltou a ser pautada em meio às festas de final de ano, quando foi de fato aprovada e seguiu para a sanção de Bruno Covas.

Agora, em fevereiro, parte do serviço público municipal encontra-se paralisada em estado de greve. Professores e agentes de saúde, por exemplo, passam horas nas ruas em grandes manifestações e distribuindo panfletos, sendo alvos diretos da violência repressiva da Polícia Militar, subordinada aos comandos de João Dória, e em muitos casos empregada pela própria Guarda Civil Militar, igualmente atingida com as mudanças.

Dito isso, o tema central deste editorial não é a já sancionada contrarreforma da Previdência em São Paulo. O preâmbulo serve apenas para retratar, ainda que em âmbito municipal, como se dá o rito de tramitação de propostas que mexem com direitos resguardados pela Constituição Federal – que tem perdido valor e importância, diga-se.

Na quarta-feira, 20, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) fez questão de levar o documento com as mudanças à Câmara Federal, onde encontrou-se rapidamente, em reunião privada, com o presidente da casa, deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), e presidente do Senado e Congresso Nacional, senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), além de algumas lideranças parlamentares. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, Bolsonaro teria dito que “temos que juntos mostrar, não para o mundo, mas para nós mesmos, que erramos no passado. Eu errei no passado e temos a oportunidade ímpar de realmente garantir para as futuras gerações uma previdência onde todos possam receber”.
Imagem: Cartunista Toni D'Agostinho
A rápida e muda – como de praxe – presença do presidente Bolsonaro na Câmara ocorreu dois dias após a queda do primeiro ministro de sua esplanada. Depois de um fim de semana de lento sangramento gratuito, ao final da tarde de segunda-feira, 18, o porta-voz da Presidência, general da ativa Otávio do Rêgo Barros, deu o ultimato de que Gustavo Bebianno, agora ex-secretário-geral da Presidência e outrora aliado de primeira ordem do capitão da reserva, estava sendo expurgado da hoste palaciana do bolsonarismo.

Deixou o (des)governo tachado de “mentiroso”. No dia seguinte, terça-feira 19, ressurgiu em meio a áudios de Whatsapp trocados entre ele e o presidente, divulgados pelo portal da revista Veja, assegurando que de mentiroso, neste caso em particular, não tem nada e, agora fora, se coloca na condição de fiel da balança para uma desestabilização maior do (des)governo já em considerável derrocada – vide o silêncio da prole: Flávio esconde-se por detrás do problemas com Queiróz e a prática da rachadinha; Eduardo já não consegue sustentar uma teoria da conspiração sequer; e Carlos calou-se como criança que, ao temer a punição por ter feito algo errado, finge-se de sonsa, como se isso bastasse.
Charge: Gilmar, o "Cartunista das Cavernas"
Bebianno viu-se enrolado em denúncias feitas pela Folha de que o PSL de Pernambuco teria lançado a candidatura de uma mulher, secretária da legenda naquele estado, a deputada federal apenas para cumprir a cota de candidatas mulheres e ter acesso ao fundo público de financiamento de campanha. O ex-secretário-geral da Presidência chefiou a executiva nacional do partido durante o processo eleitoral, o que o comprometeria e supostamente justificaria seu desligamento.

Mas consta de toda a história que:

1) a Folha já havia publicado uma matéria sobre o laranjal do PSL uma semana antes de veicular a reportagem que levou à demissão de Bebianno;

2) a diferença entre as matérias é a localização geográfica, enquanto a primeira repercute denúncias em grau mais graves envolvendo o diretório mineiro da legenda e o ainda ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, a que “desligou” Bebianno dar-se na sede estadual pernambucana, reduto eleitoral do cacique político – grave este título –, fundador e dono do PSL, deputado federal Luciano Bívar;

3) de fato Bolsonaro parece ter caído na cama de gato armada pelo filho caçula e parece que já cogitava demitir o parceiro de outrora – talvez não soubesse como fazê-lo;

4) difícil acreditar que tenha tomado a decisão de afogadilho e levando em consideração apenas a reportagem da Folha, ainda mais quando o se observa Marcelo Álvaro intacto no Turismo;

5) parte da imprensa, que não perde a oportunidade de demonstrar a força própria de um 4º Poder, colaborou com a queda de Bebianno – carregada de simbolismo para a correlação de forças por se tratar de figura íntima ao presidente. 

Mesmo que a análise pareça equivocada, o fato de Bebianno ter sujeitado o presidente à vergonha alheia de um vídeo recheado de orações que se contradizem por si mesmas mostra que o ex-ministro detém poder, e este estaria apoiado na sua relação com parte da mídia.

Bebianno foi substituído pelo general da reserva do Exército Floriano Peixoto, 8º membro das Forças Armadas no corpo ministerial e o quase 50º militar do (des)governo.
Charge: Carol Andrade, "Barbie Cospe Fogo"
Ainda na quarta-feira, 20, enquanto a análise política se debruçava sobre a proposta de alteração nas regras da Previdência Social, o jornal O Globo divulgou áudio de uma conversa, por telefone – uma chamada no “Zap”? –, entre o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), e o presidente Bolsonaro, em que ambos falam de maneira cifrada sobre “ações”, tudo indica imobiliárias, negociadas entre o ex-ministro e o agora chefe do Executivo, que chegou a afirmar que estaria “fodido” e que teria de vender um de seus imóveis caso Bebianno viesse a cobrá-lo pelo o que sabe-se lá o quê.

A conversa, segundo o jornal gravada por meio de telefonema “aparentemente acidental” de Onyx a um dos jornalistas do diário enquanto mantinha ligação paralela com o presidente, pode até não ter tido a devida repercussão em razão de o anúncio da contrarreforma da Previdência e de outras revelações do escândalo do laranjal, mas mostra-se péssimo precedente para a Presidência da República. A divulgação de áudios a torto e a direito sem proporcional justificativa por parte da comunicação do Planalto tende a retardar ainda mais a tramitação das medidas pleiteadas pelo (des)governo.
Charge: Carol Andrade, "Barbie Cospe Fogo"
O articulista escreve “ainda mais”, porque a própria base do (des)governo, sem liderança e desprestigiada nos novos métodos de trabalho – de maior resistência à distribuição de Emendas Parlamentares, por exemplo –, promete conturbar todo o processo, incluindo as rachaduras do PSL, partido do presidente e porta-estandarte da “moralidade” nas últimas eleições.

“Nova Previdência”?

Não poderia ser pior. A PEC 6/2019, da contrarreforma da Previdência, é imagem e semelhança da plataforma econômica neoliberal, de sucateamento irrestrito e fascínio – leia-se tesão – por toda e qualquer precarização, do ministro Paulo Guedes. Em questão de roteiro, não poderia ser mais perfeição para o (des)governo: o deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), então relator da contrarreforma trabalhista, ou seja, figura de maior importância no processo de ataques à classe trabalhadora e seus organismos de representação, é atual secretário de Previdência no ministério da Economia.
Imagem: Carlos Latuff;
De todos os pontos apresentados na contrarreforma da Previdência de Bolsonaro&Cia., apenas a proposta de alíquota progressiva, em que o percentual descontado em folha corresponde à faixa salarial, parece ser razoável. De resto, o texto não torna o sistema mais justo e também não acaba com privilégios, sobretudo das castas do funcionalismo e corporações com poder lobby que já rondam o Congresso para fazer aquela pressão conhecida e esperada.

Para quem chegou a dizer quando era deputado federal que “querer aprovar uma reforma com 65 anos é, no mínimo, uma falta de humanidade. Querer uma contribuição de 49 anos, isso é um crime”, o agora presidente Bolsonaro transformou-se da água para o vinho e defende idade mínima de 65 anos para os homens e 62 para as mulheres, e 40 anos de contribuição em troca do valor integral do benefício previdenciário, sendo que a PEC não estabelece metodologia de cálculo, ou seja, trata-se de uma integralidade indefinida – não se sabe se será considerado a média de todos os salários ou de apenas um período.
Charge: Gilmar, o "Cartunista das Cavernas"
Caso aprovada, a contribuição mínima para o Regime Geral de Previdência Social passará a ser de 20 anos, cinco anos a mais do que o regime atual.

Para o trabalhador rural não classificado como segurado especial será exigido o mesmo tempo de contribuição do RGPS, também cinco anos a mais do que o regime atual. O trabalhador rural segurado especial, em geral famílias produtoras de alimentos, há a manutenção da comprovação de atividade rural, que passa de ao menos 15 para 20 anos, com o acréscimo do pagamento mínimo de 600,00 reais, além do percentual sobre o faturamento com a comercialização da produção. A solicitação do benefício só poderá ser feita com 60 anos completados, para ambos os gêneros.

Para além do acréscimo em cinco anos no tempo mínimo de contribuição para professores – independente do gênero, caso aprovada, a proposta estabelece 30 anos de contribuição e idade mínima de 60 anos –, e 55 anos de idade para policiais civis e federais, sendo 30 anos e 25 anos o tempo mínimo de contribuição, respectivamente, para homens e mulheres, o ataque frontal veio nas medidas de alteração da metodologia de acesso ao Benefício de Prestação Continuada – BPC por idosos mais pobres.
Charge: Gilmar, o "Cartunista das Cavernas"
Se hoje as regras permitem aos idosos de 65 anos ou mais que não conseguem contribuir por 15 anos – mínimo exigido –  o acesso ao pagamento de um salário mínimo por mês, é sobre este grupo social que a contrarreforma mostra-se impiedosa: o documento estabelece que os idosos carentes tenham acesso ao BPC já a partir de 60 anos, sendo o valor do benefício definido em míseros 400 reais, pagos até os 70 anos, quando poderá pleitear o pagamento de um salário mínimo.

Numa piada de muito mau gosto, o (des)governo, que defende a contrarreforma trabalhista e seu ímpeto em formar cada vez mais trabalhadores informais, justifica que as mudanças servirão para estimular a “contribuição” para a Previdência Social.

A PEC esconde ainda medidas que alteram os ritos de aprovação de matérias que visam a modificar a Constituição. Em síntese, há propostas de flexibilização de votação e número mínimo de votos exigido para mudar-se pontos da Carta Magna. E pior, abre espaço para que o (des)governo venha a fazer mudanças a torto e direito, como, por exemplo, a implementação posteriormente de sistema de capitalização – ainda que não se tenha desenho de como será o funcionamento, ou seja, seria introduzido sem a necessidade de PEC e suas imposições quanto ao número de votos  – e a previsão de que, em sendo aprovada a contrarreforma da forma como foi enviada ao Congresso, o (des)governo enviaria, na forma de proposta de Lei Complementar, alteração de idade mínima de ministros do STF, criando espaço para a intervenção entre os Poderes da República e aumentando a força de influência do presidente da República, que poderia estabelecer a idade que quiser.

Só quem deve se referir à contrarreforma da Previdência como “Nova Previdência” é o (des)governo Bolsonaro. De resto, se não houver menção de que se trata de informe publicitário sobre a proposta, desconfie. Esteja certo(a) de que o respectivo veículo de imprensa ou profissional jornalista está utilizando-se muito mal da função social que lhe cabe: informar de maneira transparente inclusive quando estiver ganhando, financeiramente ou não, para usar termos da campanha oficial – “Nova Previdência” –.

Se há pouco tempo havia a promessa de dias turvos, eles chegaram trazendo junto iniciativas ruins do ponto de vista da necessidade brasileira por políticas públicas. A conferir se a mobilização norteará o devido debate em torno das propostas.

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Claudio Porto

Jornalista independente.

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