Olá prezados e prezadas!

É com grande satisfação (e tradicional pedido de escusas pelo hiato dos textos por aqui publicados) que inicio novamente nosso papo semanal, tratando sobre as principais notícias jurídicas de nosso país.


A bola da vez já é conhecida por todos com o mínimo acesso a internet: a anulação dos processos de Lula, que outrora o condenaram à prisão e o impediram de disputar o pleito de 2018.

 

Bem... Quanto a isso, vamos lá:

O processo fora objeto de uma série de Habeas Corpus impetrados pela defesa do petista ao longo do tempo, remédio constitucional esse q serve, justamente, para coibir o cerceamento da liberdade de ir e vir em razão de atos ilegais perpetrados por autoridades públicas. Bem... Dos múltiplos HCs pendentes na mesa do STF, o relator de um deles, ministro Fachin, decidiu ontem: os processos contra Lula são nulos. Maravilha. São mesmo e assim tinham de ser reconhecidos. A dúvida é: decidiu, o ministro, pelas razões certas? E isso importa tanto? Bem... Vejamos:

V. Exa. decidiu conceder a ordem, anulando os processos, sob a alegação de que os mesmos são nulos em face da incompetência do juízo a quo. Explico. A competência para julgar ações penais se dá, em via de regra, ao juízo do local onde os crimes foram cometidos. Bem... No caso do Lula, a acusação fora de ter recebido vantagens indevidas da Odebrecht, mais especificamente um sítio em Atibaia/SP e um apartamento no Guaruja - São Paulo capital. Bem... pela regra acima, deveriam julgar os casos, a justiça de São Paulo ou, então, a de Brasília, pois o presidente lá trabalhava e, assim, pressupõe-se que, se cometeu crime em razão de sua função, o fez onde estava trabalhando, justamente, correto? Bem... Esse não foi o "entendimento" da Lava Jato à época. Deram um "drible da vaca" hermenêutico para puxar a competência para Curitiba e assim instauraram o processo por lá. Caso estapafúrdio. Gritantemente nulo. Acertada a decisão do ministro, mas... há mais alguma coisa a ser dito a respeito, ou tudo termina aqui? Veja: estamos diante de um caso cuja ilegalidade salta aos olhos, e que, não obstante, fora referendada inclusive pelos tribunais de segunda instância! O próprio STF já fora defrontado com tal nulidade e nada fez.

Ah, e só para lembrar: nulidades são matéria de ordem pública. Assim, os magistrados podem e devem se manifestar SEMPRE sobre elas, a qualquer tempo e por iniciativa própria, inclusive! Não precisa que ninguém lhes peça ou diga para reconhecer!

Dito isso, perguntas como "por que só agora?" inevitavelmente retumbam nas almas sanas que ainda restam neste país. Há rumores - na minha própria cabeça - de que tal decisão fora assim fundamentada em razão do seguinte: já não é mais escusável que se mantenha os processos do Lula em estado de plena validade. A "vaza Jato" já não permite que assim se proceda. São absoluta e escancaradamente nulos.

O fundamento principal, sabemos: a suspeição do juiz Moro e do próprio MP - outrora concebido enquanto "fiscal da lei", veja só! A anulação do processo em razão da suspeição poderia, contudo, fazer ruir (ainda mais) o mito da Lava Jato criado anos atrás - inocentando Lula, por certo, mas, ainda mais: fazendo prosperar a narrativa de que 1-foi golpe; 2- foi mais golpe ainda quando juiz e MP entraram em conluio para - prender em segunda instância réu que, pela Constituição, deveria ser considerado inocente até trânsito em julgado e, assim - retirar do pleito um favorito candidato às eleições de 2018, o que deflagra fraude eleitoral e suja de sangue as mãos de quem, como boa parte dos ministros da suprema corte, algum dia apoiou versão contrária. Diante de tal impasse, como poderia Vossa Salomônica Excelência sair pela tangente?


Possível conversa interna na cabeça do ministro, entre si para consigo mesmo:

"Seguinte: não tá dando mais pra manter essa Lava Jato, cara. Os cara escancararam tudo... E aí, o que a gente faz? Opa! Mas lembra do lance da incompetência? Lembro! Bora alegar! Anulamos o processo com base nela, nos eximindo da responsabilidade de ter convalidado um processo escancaradamente nulo, ao passo que deixamos a chama lavajatista em fogo brando, apagada jamais! Assim, não ficamos como referendários do absurdo, ao passo que não manchamos nossa biografia endossando narrativas contraditórias à nosso próprio posicionamento anterior, como as recém expostas. Voilà! Partiu! Eureka!"



Conjecturas à parte, assim foi feito. Os processos foram anulados por força da incompetência e não da suspeição. Ainda é possível que os demais ministros analisem tal tema, porém, desde logo, o que podemos disso extrair? Temos mais motivos a comemorar ou a nos preocupar? Bem... de minha parte penso o seguinte: posteriormente à promulgação da Constituição Federal de 1988, tem-se que o direito - e especialmente o processo penal - é marcado por uma série de requisitos formais, frente aos quais nada pode ser feito pelo estado, sobretudo se contrário a direitos individuais dos cidadãos. Neste sentido, não valem mais as máximas como "os fins justificam os meios". É o oposto que vale em um Estado de direito. São os meios, os únicos capazes de justificar os fins. Lembremo-nos: "ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado...". Logo, é o trânsito em julgado que faz alguém culpado, juridicamente falando, e não o eventual e/ou hipotético delito. Assim também, não apenas importam as disposições finais de uma decisão judicial - no sentido de se dizer coisas como "inocente", "culpado", "nulo" ou "legal". Não é a afirmação de nulidade que torna o processo nulo, mas justamente os fundamentos pelos quais assim se sustentou. Pois se assim o é, deve-se dizer: os fundamentos importam e muito ao direito e eu explico o porquê.


Nós, cidadãos, integrantes de um Estado Democrático de Direito somos herdeiros de uma tradição liberal de luta contra o uso despótico de poder. Assim, lutaram, os revoltosos franceses, à época, pela determinação de regras pré-ordenadas para regular o convívio social, como forma de repúdio e total afastamento das arbitrariedades do governante. Neste sentido, cada ato do poder em questão passaria a ter de estar previamente fundamentado em lei para somente então ver-se aplicado na prática. Sim, o direito mudou de lá para cá e já não concebemos que apenas a "letra fria" da lei seja suficiente para regulamentar o convívio social de sociedades tão complexas quanto as atuais. Disso, porém, não se pode concluir que tenhamos retornado à forma de Estado cuja vontade dos poderosos é soberana. Não à toa - e por isso mesmo - falamos de Estado de Direito e não de reinos de famílias tal e tal. É que o Direito já não é mais visto como reles conjunto de regras escritas. É, antes disso, a sua interpretação, dada caso a caso, num amalgama entre textos, contextos e princípios. Mas veja: interpretar não é fazer o que se bem entende. Interpretar não é dizer qual cor lhe agrada mais. Interpretar é atribuir sentido e esses vêm da história/tradição. Assim, não pertencem a um sujeito só, bem como não estão dados às subjetividades individuais. Pois se assim é que é, então, veja: Fachin ter decidido o caso em apreço tão somente com base na incompetência do foro, desprezando as demais questões - a exemplo da flagrante suspeição do juiz Moro -, com o único fito de não assumir o grave erro institucional cometido até então, é ato anti-jurídico, pois, ao decidir em proveito próprio (lê-se: para não "manchar a própria biografia" - manchando-a, paradoxalmente), está, acima de tudo, desrespeitando a própria tradição do Direito, enquanto conjunto de normas idealizadas para fins de justamente coibir o uso arbitrário de poder.


Esta é uma patologia antiga de que padecem os membros do judiciário. O Lula está livre? Está, embora ainda possa sofrer novo processo. O Brasil ganha enquanto nação, cuja justiça tardou, falhou, mas, ao fim, reduziu danos práticos perpetrados a um cidadão ilegitimamente condenado. Perde, todavia, ao seguir sendo um Estado governado pelo arbítrio dos julgadores. A nós mortais resta assistir e criticar, até onde nossas forças nos permitam ir.


P.S.1: Este texto (e o seu título) deve servir para isso: para que tenhamos, todos, os olhos abertos, e saibamos que, no "triângulo processual" do direito contemporâneo, o que vale é a (fundamentada) "hipotenusa", que só se obtém "enquadrando-se" os "catetos" - e não saindo pela tangente!


P.S.2: por falar em geometria, nas antigas aulas de escola, ainda me recordo: professor dizia que não bastava escrever o resultado. Tinha que demonstrar como se chegou nele. Não sei o que fizemos depois disso, mas aparentemente esquecemos dessa regra de ouro ao sair de lá...

Abraços democráticos e até a próxima!


Sobre a coluna

A coluna Homo Juris é publicada sempre às quartas-feiras.
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Guilherme Azevedo

Advogado e Filósofo, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) com dupla titulação em Estudos Políticos pela Universidad de Caldas/Colômbia.

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