Olá prezados e prezadas, companheiros e companheiras!

["eaí sumido?", me dirão, eu sei] 



Como talvez possam ter percebido, eu tenho estado um tanto ausente por aqui... A vida profissional e acadêmica, por vezes, nos toma tempo, de maneira que temos de priorizar algumas atividades em detrimento de outras. O mundo "real", contudo, clama que eu não os deixe sem meus queixumes tecnicistas por aqui.             


Sobre o tecnicismo, perdoe-me, mas peço escusas parafraseando Fernando Pessoa:

"Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.

Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.

Com todo o direito a sê-lo, ouviram??!!"

 


Dito isso, vamos ao caso em questão:

Circula, nesses dias, a notícia de que uma jovem, Mariana Ferrer, vítima de estupro, fora humilhada em audiência do processo penal relativo ao delito praticado contra si.

No caso, conta-se, ainda, que o processo, muito embora repleto de evidências, terminou por ser julgado improcedente, no sentido de absolver o réu.

       


Consta, também, que o eminente representante do Ministério Público, tendo sido substituído em meio ao processo, passou a considerar que seria o caso de absolvição, embasando sua manifestação no curioso (e inédito) instituto do ESTUPRO CULPOSO.

-Errata: esta tese não foi defendida expressamente pelo MP, ao menos não no uso de tais termos. De qualquer modo, o que fora apresentado pode ser assim interpretado -

O Juiz acatou o pedido de absolvição, não com base na aludida figura alegórica, mas na hipotética ausência de provas.


É este o relatório.

O que podemos dizer/fazer a este respeito?

Pois bem... inicialmente cumpre esclarecer:

A modalidade de estupro a que o réu está sendo acusado é aquela prevista no art. 217-A do Código Penal brasileiro, que trata, justamente, do estupro de vulneráveis, estes entendidos como aqueles que, transitória ou permanentemente não podem manifestar seu consentimento.

No caso em questão, tratou-se, de fato, de ato libidinoso para com vítima, que, por efeito de entorpecentes (álcool e talvez drogas), deveria ser considerada vulnerável - recordando-se que, no caso de estupro de vulneráveis, não há que se falar em consentimento: o crime se materializa independentemente dele. Para compreender esta noção, basta que pensemos em um estupro de uma criança. Neste caso, como se pode intuir claramente, a anuência do/da menor é indiferente. O estupro é assim considerado independentemente dela, como se pode imaginar, pois, muito embora o/a infante haja consentido, considera-se que não possuía, por sua idade, a plena capacidade de compreender a situação em que estava inserida, não sendo válida a sua possível aceitação. O mesmo vale para estados de embriaguez.

Acerca das provas do presente caso, obteve-se, até segunda ordem, a informação de que nos autos do processo restou comprovada 1. a conjunção carnal e 2. o estado de embriaguez da vítima.

O Ministério Público, quando em substituição de seu representante nos autos do aludido processo, referiu, contudo, que o réu não possuía condições de verificar o estado de vulnerabilidade em que se encontrava a vítima, razão pela qual incorreu na figura jurídica conhecida como "erro de tipo", ou seja, quando o agente não reconhece, equivocadamente, que sua conduta é criminosa, por razões que lhe fogem à capacidade exigida para a devida compreensão acerca de seus atos.

Este erro, genérica e juridicamente falando, pode, de fato, ser considerado escusável ou inescusável, ou seja, pode-se compreendê-lo como "algo que acontece, e, portanto, não há que se falar em punição" ou algo que, embora em erro, não isenta o autor de responsabilização pelos seus atos.

A avaliação quanto a caracterização do delito entre escusável e inescusável, costuma se debruçar sobre uma gama limitada de condições, sendo as principais delas a possibilidade de o réu 1. compreender que sua conduta materializava, de fato, um delito; 2. a capacidade de o réu evitar a sua conduta e/ou o resultado da mesma. 

Ora pois... no caso em apreço, tem-se que o crime é materializado não apenas pelo ato libidinoso, mas, especialmente, pela ausência de (e/ou incapacidade de manifestar) consentimento por parte da vítima.

Neste sentido, pergunta-se: 1. poderia o réu conhecer da condição de não aceitação e/ou vulnerabilidade da vítima? 2. poderia o réu ter evitado o resultado?

Bem... a pergunta 2 é de fácil resposta: sim.

Para a primeira pergunta, vale refletir:

Em uma situação de "pré-conjunção carnal", de que maneira pode o agente conhecer da situação da vítima acerca de seu consentimento e/ou, ao menos, da capacidade de manifestá-lo? Ora, pois... para nós, a resposta também parece óbvia: bastava perguntar à mesma! A partir de uma possível pergunta do agente à vítima, poderiam, então, derivar alguns resultados:


1. A vítima não respondeu, por total incapacidade de fazê-lo; 2. ao proferir suas respostas, denotava baixa capacidade de compreender a situação em que estava inserida.

Pois em sendo qualquer um destes casos, tem-se que o suposto erro de tipo cometido pelo réu não é escusável, pois, como nos exemplos acima, o mesmo era capaz de conhecer facilmente (mediante simples pergunta) acerca da condição da vítima!

Neste ínterim, vale reforçar: tratando-se de conjunção carnal, a diferenciação entre o fato atípico (de se manter relação sexual consentida com alguém) e incorrer no delito de estupro implica em analisar-se, antes de qualquer outro elemento, a hipótese de a vítima consentir com o ato - não à toa, o diploma legal sequer reconhece a possibilidade de que tal tipo penal possa ser praticado de maneira culposa, ou seja, sem a efetiva intenção de fazê-lo, pois, em suma, a intenção é indiferente à materialização do delito.

E aqui cabe uma diferenciação: uma atitude dolosa é aquela que se realiza com a efetiva intenção de praticar o delito tipificado em lei; a forma culposa é quando o agente não detinha o efetivo interesse de praticá-lo, embora o tenha praticado. Tal diferenciação somente se admite aos delitos expressamente assim subdivididos em lei, ou seja, tão somente quando a forma culposa encontra-se expressamente prevista na legislação nacional. Caso contrário, o crime praticado é penalizado por sua própria prática. É este o caso do estupro. Tratando-se de conjunção carnal sem consentimento, estamos diante da aludida figura delituosa, independentemente da efetiva intenção do agente, especialmente por se tratar de crime hediondo, razão pela qual, com efeito, não faria sentido que, em tendo sido praticado, a sua punição pudesse ser atenuada pela ausência de intenção.

O tipo penal que o criminaliza o aludido delito assim dispõe:


"Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência."
Ora, pois... mediante simples leitura do dispositivo acima se pode perceber que o elemento "dolo" não faz parte do tipo, razão pela qual deve ser considerado como indiferente à aplicação das penas do tipo penal em questão. Na lei, não está escrito algo como "ter conjunção carnal mediante dolo ou culpa", como em outros tipos penais. Está escrito tão somente "ter conjunção carnal". Neste sentido, tem-se que, com efeito, a intenção do agente é indiferente à materialização do delito. Se teve conjunção carnal com quem não consentiu e/ou era incapaz de manifestar seu consentimento, então cometeu o crime. Ponto final.

De qualquer sorte, vale dizer: não obstante as intenções do agente sejam indiferentes à configuração do delito, no caso de um estupro tem-se que, na prática, é bastante improvável e inconcebível que o agente não compreenda devidamente a situação diante de si a ponto de poder alegar que não possuía a intenção de cometer o crime. Como dito anteriormente, bastava ter perguntado à moça. Se ela dissesse sim, então ok. Qualquer outra alternativa, tal qual ela estar embriagada demais para responder, deve ser entendida não enquanto dúvida escusável acerca do potencial crime, mas como vulnerabilidade da vítima, a ponto de qualificar o crime, antes que aboná-lo!

- Assim, diga-se: NÃO EXISTE ESTUPRO CULPOSO! -

 


Postas tais questões, a discussão neste processo passaria a ser apenas acerca da efetiva materialidade do delito, ou seja, se a vítima manifestou ou não o seu consentimento ou se estava, de fato, em estado de incapacidade de manifestá-lo.

Nas notícias até então veiculadas, consta que foram anexadas provas aos autos no sentido de comprovar que a vítima estava, de fato, sob o efeito de substâncias químicas que lhe furtavam a capacidade de manifestação da própria vontade. Em sendo este o caso, se está diante da ocorrência do tipo penal em tela, ou seja, estupro de vulnerável. Simples assim.

Como os autos do aludido processo são sigilosos, não temos acesso aos mesmos para fins de averiguar se as evidências trazidas ao mesmo são capazes de confirmar que a vítima não consentiu e/ou não possuía plena capacidade de consentir com ato praticado. O que se sabe, como já dito, é que foram juntadas provas de que o ato efetivamente ocorreu e que a vítima estava, de fato, em estado de embriaguez. Dadas tais premissas, o que se pode concluir a este respeito? Julgou certo o magistrado?

Pois bem... aqui entramos em uma discussão milenar no Direito. Quem deve determinar/avaliar as provas quanto a sua possibilidade de permitir sejam delas retiradas estas ou aquelas conclusões?

Até pouco tempo, concebia-se, em nosso sistema jurídico, a ideia de que o juiz, ao julgar, poderia apreciar livremente as provas, a fim de firmar seu convencimento. O conceito de prova, neste sentido, poderia ser aplicado, ao fim ao cabo, a tudo aquilo que for capaz de influir o convencimento do juiz. Não à toa, brincava-se, academicamente falando, que, se este era o conceito de "prova" no âmbito judicial, então o fato de o advogado ter se barbeado antes de ir à audiência ou o café da manhã do juiz ter "descido bem" naquele dia, deveriam ser consideradas espécies de provas também, pois, sabemos nós que tais elementos influenciam, por vezes, em nossa capacidade de julgar o que vemos.


Ocorre, contudo, que nos últimos tempos, sobretudo com o advento do Código de Processo Civil de 2015, o juiz não é mais um sujeito a ser considerado como protagonista nos processos, devendo, ao revés, ser considerado como mais um sujeito processual a cooperar com as partes e demais envolvidos para o alcance de uma decisão justa e efetiva. Não à toa, fora suprimido no novo texto legal a noção de que ao juiz fosse dado julgar segundo seu "convencimento livremente motivado".


Em suma, em instantes atuais da ciência (e da prática) jurídica nacional, não se concebe mais que os juízes sejam livres para decidir conforme pensam. O juiz deve, ao revés, manifestar, em suas decisões, a aplicação dos ditames jurídicos vigentes no território onde exerce sua função. Assim, ao julgar deve se perguntar não mais coisas como "o que eu acho disso aqui?", mas, antes, "o que o Direito tem a nos dizer sobre isso?"

Bem.... nesta segunda pergunta, entram diversas questões. Como vimos, o direito nos diz que, em sendo o caso de ocorrer estupro, o réu deve ser condenado a pena de 8 a 15 anos de reclusão. A lei, contudo, não nos diz quais as provas devem constar no processo para que assim se possa afirmar. O texto da lei nada dizendo a este respeito, resta então que o juiz interprete as evidências segundo a sua própria sensibilidade? Não! Como já dito, a ideia de que o juiz é livre para decidir é ultrapassada e eu explico o porquê.

O Direito, em moldes contemporâneos não é mais visto como reles conjunto de textos normativos a serem livremente interpretados por quem tem este poder e incumbência. O direito, como é visto hoje, pressupõe não apenas os textos normativos, mas, sobretudo, a compreensão que deles é feita. Ora pois... se o Direito não é apenas os textos normativos mas também a sua interpretação e aplicação, e se o Direito da grande maioria dos Estados contemporâneos, erige-se sobre a sua forma democrática e constitucional, então resta que aos juízes não é dado fazê-lo a seu arbítrio, seja em âmbito legislativo, via redação dos textos normativos, seja no âmbito interpretativo, onde se desvela o sentido das normas aplicáveis a cada caso.


Assim, quanto à interpretação, a mesma deve ser feita não com base tão somente nas pré-compreensões do juiz/intérprete, mas na compreensão compartilhada por toda comunidade envolvida acerca do caso em questão - acrescente-se: o ponto de partida é a tradição!

Neste sentido, se, em casos similares ao seu, compreendeu-se que, com as provas apresentadas, é o caso de se afirmar que houve, de fato, estupro, então é seu dever assim decidir.

Novamente, como já dito: contemporaneamente, não se pode mais admitir que o judiciário seja o "dono" da lei e/ou de sua interpretação. Para tanto, vale relembrar os princípios que estruturam nosso sistema: A democracia impõe que o Direito a ser aplicado seja aquele proposto pelo povo e para o povo. O Estado de Direito (e, com ele, a legalidade) impõe que as normas a serem efetivamente aplicadas derivem dos próprios textos (e de sua interpretação), e não da vontade de qualquer sujeito individual. Disso se conclui, conforme já referido, que o juiz não pode interpretar/aplicar as normas conforme sua subjetividade. Deve, antes, confrontá-la com a que vige no cenário em que se insere, para fins de reconhecer, por fim, que seu dever não é legislar, mas apenas fazer valer os primados constitucionais reconhecidos desde 1988, mormente quanto á ideia de democracia e estado de direito.

Conclusão:

Sendo o caso de, na jurisprudência nacional, julgar-se casos análogos de maneira diversa, é de se concluir que o juiz em questão incorreu em erro, desrespeitando os já citados e tão celebrados princípios constitucionais de nossa república. As razões pelas quais ele assim o fez, eu deixo aos leitores para concluir....



Obrigado pela leitura!

Seguimos no combate ao autoritarismo!

Até a próxima!

P.S.: Estamos, por óbvio, horrorizados com todo este caso. De qualquer maneira, resta aquela questão: o que esperar de um sistema judiciário cujos agentes (aqui inclusos os procuradores do Ministério Público e os magistrados) há pouco tempo foram pegos combinando sentenças e provas à apresentar em desfavor de um ex-representante máximo do executivo nacional, e que hoje, ao invés de terem sido punidos, curtem férias nos "esteites"?

P.S.2: Por fim... acerca das humilhações sofridas pela vítima na audiência, nada a se declarar senão o total repúdio à inércia do poder público em proteger aqueles que deveria, justamente, salvaguardar. Pelo que se sabe, foram veiculadas, em audiência, de maneira completamente desnecessária, imagens íntimas da vítima. Ora pois... outro primado importante de nossa república é a dignidade da pessoa humana, sendo ela considerada, inclusive, questão de ordem pública, sobre as quais qualquer agente público (e até privado) tem o dever de proteger e evitar ou fazer cessar qualquer espécie de atentado em seu desfavor. Assistimos, novamente, ao completo desrespeito aos mais caros princípios de nosso ordenamento. Que os órgãos de controle e fiscalização responsabilizem devidamente os culpados. 

Sobre a coluna

A coluna Homo Juris é publicada sempre às quartas-feiras.
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Guilherme Azevedo

Advogado e Filósofo, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) com dupla titulação em Estudos Políticos pela Universidad de Caldas/Colômbia.

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