Repercutiu, esta semana, a notícia de que o decano do STF irá se aposentar. Assim sendo, abre-se vaga para nova nomeação de ministro no Tribunal Constitucional brasileiro. A competência para a nomeação é do presidente da República, neste caso, o sr. Jair Messias Bolsonaro. Inicia, destarte, a corrida pela vaga. O que esperar?

Se por questão de marketing para com sua claque, ou porque efetivamente nutre tal interesse - a ponto de levá-lo à cabo - o fato é que nosso atual representante máximo do executivo nacional refere, já há tempos, sua inclinação em colocar lá alguém "terrivelmente evangélico". O que isso pode ocasionar? 


A resposta à pergunta acima implica em discutirmos, antes, sobre o papel dos magistrados e saber até que ponto o fato de o futuro ministro ser, nas palavras do (des)presidente, terrivelmente evangélico, pode influenciar no Direito nacional.

  

Inicialmente, cabe referir que, se por "evangélico" se quer referir a alguém que segue estritamente os mandamentos do evangélico, então tem-se que poderíamos contar, nos próximos instantes, com um ministro que, justamente, segue os preceitos de Cristo. Neste sentido, me vem à cabeça, de imediato, a ideia de que, segundo o (verdadeiro) messias cristão, "é mais fácil um camelo passar no buraco de uma agulha do que um rico entrar no céu". Fosse este o caso, teríamos um ministro "pró povo". Que enxerga e se solidariza com as causas populares. Está pelos mais vulneráveis, irremediavelmente.


Assim concebendo, teríamos que a nomeação de um ministro "terrivelmente evangélico", numa acepção de que segue estritamente os preceitos do evangelho, incutiria em termos um legítimo representante do povo a ocupar a cadeira vaga no aludido Tribunal. Golaço de placa dos progressistas!

A palavra evangélico, em solo nacional, não implica, todavia, em uma acepção pura, em que fosse evangélico quem segue os preceitos do evangelho. Aqui, tem-se por evangélico aquele que se vincula à Igreja Evangélica (mormente em sua matriz neo-pentecostal), cujas pautas em muito distam dos preceitos do evangelho de Jesus. No Brasil (e quiçá, pelo resto do mundo), evangélicos restringem-se a pinçar pautas conservadoras do texto bíblico, sempre de sorte a reforçar preconceitos e impedir o livre exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos.


A nomeação de um ministro evangélico, nesta acepção, visaria agradar o eleitorado (e os apoiadores representantes de igrejas, verdadeiros cabos eleitorais do atual governo) para fins de que, tanto quanto possível, o judiciário não permita que as pautas liberais, no quesito costume, evoluam.

A função da Suprema Corte, de seu turno, é controlar o cumprimento da Constituição, seja pelo próprio judiciário, em decisões de primeira ou segunda instância, seja pelo próprio Poder Legislativo, mediante Ações Diretas de Inconstitucionalidade, com o fito de atacar propostas manifestamente inconstitucionais advindas do Congresso Nacional.

A vigente Constituição brasileira, de sua parte, é a famigerada Carta Cidadã, assim nomeada especialmente por garantir o livre exercício dos direitos individuais. Neste sentido, ter-se-ia que o dever dos ministros da suprema corte brasileira resumem-se à garantia do exercício destes direitos constitucionalmente garantidos. A questão que se coloca é até que ponto poderá o credo dos julgadores influir nos seus julgamentos quando da proteção da nossa vigente Lei Maior.


O nível de possibilidade de influência pessoal dos magistrados no Direito é questão discutida desde há muito. O que temos hoje é que o Estado é, sobretudo, democrático. Assim, o poder deve ser exercido pelo povo, através de seus representantes, legitimamente eleitos. Sendo assim, não cabe, por via de regra, aos magistrados, criar normas através de seu foro íntimo, pois não foram eleitos para tanto.

De outra banda, vivemos sob a concepção de que o Direito contemporâneo consagra a primazia do "Governo das Leis" sobre o "Governo dos homens". Isso implica em que a norma a efetivamente ser posta em prática pelo Estado deve ser aquela advinda do próprio conjunto normativo, antes que da vontade de um sujeito só, seja ele presidente, legislador ou ministro da Suprema Corte.

Assim, por via de regra, a subjetividade do magistrado não poderia influir nas suas decisões, visto que o mesmo deve tão somente aplicar as normas conforme o Direito posto através dos procedimentos válidos para tanto.

Ocorre todavia, que também desde há muito já não concebemos que o Direito esteja limitado às reles disposições textuais das leis. Assim, o Direito, como concebido atualmente, implica em um conjunto de regras advindas dos textos legais e/ou de princípios, sempre amalgamados, por meio da interpretação, com os fatos concretos desta ou daquela situação que ao intérprete/julgador se antepõe.

Neste sentido, uma vez que a atividade dos magistrados é, antes de tudo, interpretativa, resta, mesmo em âmbito teórico, a dúvida acerca de se o sistema jurídico, concebido nos moldes recém expostos, é capaz de conceder sempre uma resposta (juridicamente adequada) para cada caso, ou se, ao contrário, existirão instantes em que o Direito não é capaz de apresentar solução a determinados casos, momento em que ao juiz seria dado decidir segundo suas próprias concepções. Neste caso estaríamos falando de uma hipótese extraordinária, diga-se, de o Poder Judiciário exercer atividade eminentemente legislativa, pois, julgando com base em sua consciência, os magistrados estariam nada mais do que criando normas a partir de sua subjetividade, tal qual o fazem, autorizadamente, os legisladores eleitos para tanto.


Como vimos, a questão de os representantes do judiciário exercerem atividade legislativa é problemática, dado que, conforme dito, vivemos sob o prisma da democracia e, portanto, o poder de criar normas jurídicas deveria, ao menos em tese, ser exercido pelo povo, antes que por qualquer sujeito não eleito para tanto.

Tendo-se tal premissa como base, a primeira questão a se destacar é: se há tal possibilidade - de o magistrado ter de, por vezes, exercer função legislativa - então tal só poderia ser realizado em casos excepcionais, em "ultima ratio", quando não houver outra alternativa, e não como regra performática geral.

Acerca da hipótese de que, em algumas situações, o Direito não concede respostas aos casos concretos, de sorte a que os mesmos restem desprovidos de respostas juridicamente adequadas, tem-se, por outro lado, que esta ideia implica em certa compreensão do Direito deveras limitada, posto que pressupõe que juízos subjetivos já não façam parte do sistema jurídico vigente. Com efeito, aqueles juízos, sobretudo morais, que advém da simples vontade e/ou gosto pessoal do julgador (e dos demais sujeitos, individualmente considerados) não merecem guarida jurídica, de sorte a que não podem, pelo que se disse anteriormente, integrar o sistema normativo vigente, pois, como já dito, vivemos sob o prisma do Governo das Leis, antes que do Governo de qualquer sujeito.

Pois se a subjetividade individual de determinados sujeitos não pode influenciar na aplicação das normas jurídicas, e se o direito, objetivamente considerado, enquanto reles conjunto de textos normativos, não concede respostas a todos os casos, então a partir de que viés deveriam os magistrados julgar os casos postos diante de si?

Quando se fala em subjetividade e objetividade, se tem em mente, normalmente, que ou se trata de algo pessoal, como um gosto, ou algo objetivo, como uma descrição física do gênero "tal carro movimentou-se naquela direção em tal velocidade e aceleração".


Nas ditas ciências humanas, não há, contudo, apenas essas duas possibilidades. Quando se fala em "objetividade" em ciências como a história, não se tem mais em mente que o pesquisador deva realizar descrição de fenômenos históricos tal qual o faria o físico ao analisar o movimento de um automóvel, conforme descrito no parágrafo anterior.

O conhecimento histórico advém, antes, da tradição da comunidade, sobretudo a especializada, cuja qual fixa, ao longo do tempo, as balizas dos fatos históricos e/ou mesmo morais concebidos enquanto tais (enquanto fatos), para fins de estabelecer a verdade do que historicamente se investiga.

Assim, sendo o direito uma ciência humana, não se pode exigir que, para a validação de um preceito jurídico, seja obtida a precisão físico-matemática, pois não é disso que se trata o conhecimento em tal seara.

Neste sentido, se o conhecimento histórico advém não de fatos objetivos, mas da tradição da comunidade, sobretudo a especializada, tem-se que o magistrado, ao julgar seus casos, não dispõe apenas de, ou uma análise objetiva dos preceitos textuais das normas jurídicas, ou a sua subjetividade íntima. Possui, ao revés, a seu dispor, os fatos históricos (e morais) advindos da tradição, de sorte a que, por dever de função, deve a eles atentar quando de seu julgamento, pois, conforme já dito, não pode ele legislar, mas apenas aplicar os preceitos já previamente válidos e existentes em seu meio social.

Dadas tais considerações, concluir-se-ia que indifere o credo dos magistrados, pois devem, eles, julgar conforme a tradição, mesmo que esta contrarie seus preceitos subjetivos particulares. Os textos normativos por certo servem como guias, como passos iniciais da interpretação a ser realizada pelos magistrados. A partir dos mesmos é que os julgadores terão a tarefa de desvelar o sentido dos preceitos jurídicos materializados nas leis e/ou nos princípios. A busca deve ser na tradição, antes que nos elementos sintático-semânticos dos textos e/ou em sua sensibilidade privada.

Com base no que se disse, concluir-se-ia que ter ou não ter um ministro "terrivelmente evangélico" é indiferente às funções que o mesmo irá desempenhar.

Sabidamente o congresso conta atualmente com quase metade de suas cadeiras ocupadas por representantes e/ou adeptos da religião evangélica, em seus moldes neopentecostais já antes referidos. É possível, destarte, que queiram, os legisladores, implementar normas que se adéquem à sua matriz ideológica, predominantemente conservadora na seara dos costumes.

A Constituição, como já dito, não permite que pautas ideológicas sejam impostas aos cidadãos, pois a mesma serve, justamente, como norma contra-majoritária, de sorte a que as maiorias não possam impor arbitrariamente seus anseios sobre os direitos fundamentais dos demais indivíduos.

Neste sentido, caberá, cada vez mais, ao judiciário, refrear os ímpetos totalitários de um Legislativo conservador e autoritário. O STF, enquanto Corte Constitucional - e, portanto, os seus Ministros - possui justamente esta função, diga-se, a proteção de nossa vigente Constituição Federal, de sorte a que os direitos individuais dos cidadãos não sejam desrespeitados, especialmente pelo próprio Poder Estatal.

À parte a discussão jurídica, esperemos que, na prática, seja quem assumir, cumpra devidamente com suas funções.

O histórico da corte brasileira infelizmente não é favorável. Não são poucas as decisões onde Ministros impõe seus preceitos pessoais por meio de suas decisões.

Esperar que justo agora haja modificação deste comportamento por parte do Ministro que está por vir pode parecer utópico, e quiçá até seja.

O ponto é que cabe, em última instância, à sociedade, promover o "controle dos controladores", de sorte a constrangê-los a julgar apenas e tão somente conforme sua função.

Aguardemos e constranja-mo-los, para que cumpram devidamente a sua função!

Abraços Constitucionais!


Até a próxima!!

Sobre a coluna

A coluna Homo Juris é publicada sempre às quartas-feiras.
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Guilherme Azevedo

Advogado e Filósofo, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) com dupla titulação em Estudos Políticos pela Universidad de Caldas/Colômbia.

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