Nos últimos dias deste ano distópico de 2020 o Brasil assistiu ao novo caso que nós, operadores do Direito, já estamos bastante familiarizados. Trata-se do que chamo de "cerâmica hermenêutica", realizada por nosso judiciário, onde os MM. srs. "Artesãos Magistrados" moldam o "barro" legislativo que detemos, conforme os gostos do cliente ou do próprio juiz/ceramista. Aos desavisados, este caso pode soar alarmante, especialmente quando observado sob a ótica do atual jogo político. Esta questão, porém, está longe de ser nova.


Me refiro ao caso do nosso "Power Ranger Laranja"... sim. Ele. O Queiroz. Foi preso e "des-preso", desprezando-se a legislação nacional.[1]

 

Pois bem... um pouco de história:

Já desde a Grécia Antiga, autores como Platão (428 - 347 a.C.) e Aristóteles (384 - 322 a.C.) concebiam que as regras do jogo chamado "convívio social/político" deveriam se sobrepor aos desmandos de uma vontade pessoal de um soberano, devendo, tanto quanto possível, serem escritas.[2] [3]Tal fato se dá especialmente em razão de se garantir que as regras pudessem ser conhecidas por todos, e, assim, nenhum cidadão pudesse alegar (com legitimidade) que às desconhecia e/ou que elas sequer existissem. A ideia de um direito escrito acompanhou nossas civilizações ao longo de toda nossa existência, possuindo efetivo marco histórico no movimento conhecido por "codificador"[4]. Tal moção postulava, especialmente no período pós Revolução Francesa, pela ideia de união das normas esparsas do território francês (e alemão) em apenas um só código, frente ao qual se pudesse, via acesso ao mesmo, conhecer, de pronto, as normas a serem seguidas pelos cidadãos.


A ideia era garantir que o poder não seria utilizado de maneira arbitrária, quer pela autoridade executiva, quer pelo judiciário, posto que, sobretudo ao longo da aludida Revolução, passou-se a entender que o poder deveria pertencer ao povo. Tal noção encontra justificação histórica no fato de que, já desde esta época (aqui inclusos os seus "um pouco antes" e "um pouco depois") lutava-se pelo fim do poder despótico, exercido, naquele tempo, por reis, juízes e membros do clero. Assim, aos revoltosos, não mais se mostrava aceitável que os destinos da nação e/ou território, bem como daqueles que nele vivem, fossem ditados arbitrariamente por um só sujeito. A burguesia vinha tomando corpo e, destarte, poder. Assim, desejou independência, sobretudo para poder levar a cabo o seu projeto de expansão e crescimento. [5] [6]




Mesmo com o declínio da Revolução, especialmente marcado pelo que se conheceu, posteriormente, como período do Terror[7], os sistemas normativos não mais foram os mesmos. Assim, no período napoleônico, entendia-se que, com efeito, o poder somente poderia ser exercido pelo legislador. Ocorre, contudo, que o Código Civil da era napoleônica jamais determinou que os juízes não poderiam eventualmente exercer certa interpretação, via analogias, por exemplo, para aplicar a lei. Esta noção, contudo, foi proposta por seus estudiosos, o ditos exegetas, que terminaram por compreender (equivocadamente) que o novo sistema jurídico vigente vedava por completo a interpretação judicial. Neste sentido, surgem brocados como "in claris cessat interpretatio", alusivo à ideia de que, quando a lei fosse clara, seria proibido interpretá-la.[8]

A conjuntura social e econômica dos anos que se seguiram, demonstrou, contudo, não ser possível o atingimento de tal ideal, especialmente porque diversas eram as novas situações havidas no cotidiano social, de sorte a que o Direito, estático, não mais conseguia acompanhar os avanços do mundo "real".[9] Neste sentido, restou aos sistemas jurídicos permitir certa mobilidade interpretativa aos magistrados, porém, ainda com fortes amarras no texto legal.

Tal situação se modificou em maior medida apenas com o avento das Grandes Guerras, sobretudo a Segunda, onde, especialmente na Alemanha (epicentro dos conflitos e dos terrores praticados sob o regime nazista), passou-se a perceber, enfim, que o excessivo poder concedido ao legislativo -permitindo-lhe legislar livremente sobre assuntos de seu interesse sem qualquer controle externo - poderia ser deveras danoso. Um bom exemplo de tal questão é a ideia de que as cruéis regras vigentes no regime nazista, a despeito de serem injustas e desumanas, estavam todas previstas em lei.


Assim, naquele país passou-se a desenvolver novas normas, de sorte a "oxigenar" o sistema jurídico, especialmente com a positivação de normas com conteúdo mais abstrato, genérico, permitindo, sobretudo aos magistrados, realizar juízos não apenas de legalidade frente aos casos postos diante de si, mas também de valor (moral). Neste sentido, poderia, a partir de então, o juiz, quando ao interpretar a lei, simplesmente não aplicá-la, toda vez que a mesma incutisse em alguma injustiça.[10] [11]

O tempo se passou e hoje lidamos com o problema reverso. Os juízes, a partir do poder que lhes fora concedido à época - na tentativa de controlar o poder eventualmente despótico do legislativo - exacerbaram suas novas potencialidades, de sorte a que, mesmo naquele país, hoje se fala não mais em limitar os poderes de um legislativo possivelmente autoritário, mas em teorias no intento de bem delimitar esta hipotética liberdade interpretativa/aplicativa concedida anteriormente aos magistrados.

O caso brasileiro é ainda pior. Em solo nacional, somos, em grande medida, herdeiros do sistema jurídico alemão.[12] A nossa realidade, porém, não é a mesma que a germânica. Lá, os novos sistemas do pós Guerra visaram, como dissemos, refrear o despotismo legislativo. Aqui, nossa crise é democrática. Nós, enquanto povo, sequer chegamos a nos manter verdadeiramente no poder. A democracia brasileira é bastante jovem, sendo de conhecimento geral que, em maior parte, nosso País viveu sob regimes totalitários e despóticos. Neste sentido, a necessidade brasileira (ainda) não é propriamente a de refrear o poder de um legislativo eventualmente autoritário, mas, antes, garantir que a democracia seja exercida e respeitada em seus moldes constitucionais.[13]


Ignorando-se, todavia, a diferença de "momentos históricos" em que se encontram as duas nações, o Brasil terminou por importar, em grande medida, o sistema jurídico e as teorias do Direito alemão. Assim, normas com "conteúdo aberto" foram promulgadas em solo nacional, bem como, na jurisprudência, passou-se a se utilizar de metodologia em muito afeta aos ditames alemães do pós Guerra, sobretudo com a utilização de princípios.

Como somos, no entanto, nações diferentes, com culturas diferentes, seria natural que a aplicação dos ideais alemães fosse também realizado à brasileira, pois não? Não. Em solo nacional, juristas simplesmente ignoram as diferenças havidas entre ambos os países e, o pior: sequer compreendendo devidamente as teorias alemãs, utilizando-as, não raro, apenas como reles álibis para o uso arbitrário de poder.[14]

Assim, quando se fala, em solo alemão, que os juízes detêm uma maior margem interpretativa, no Brasil compreendeu-se, na prática, que a liberdade é total e absoluta, bastando, para tanto, uma "motivação explicativa" - mas não necessariamente "justificacional" das decisões judiciais. Em suma: explicar, mas não necessariamente justificar.[15]

Disso resulta um grande déficit democrático, na medida em que o juiz não fora eleito para fazer as normas e, assim, em tese, não poderia criar o direito, senão apenas aplicá-lo.

Abstraindo-se da questão prática, o ponto é: na tarefa de interpretar o Direito, o juiz deve manter-se atento aos ditames normativos de nosso sistema jurídico nacional (ainda que se compreenda que o mesmo é composto não apenas de regras escritas, mas também de princípios, cuja moralidade pública é fonte).[16]

À parte questões de interpretação difícil, onde não é tão simples determinar o que efetivamente o sistema jurídico nos diz a respeito de um caso em análise, tem-se, como vimos, que o dever do juiz é sempre buscar no e pelo Direito a fundamentação de suas decisões. Neste sentido, podem haver casos limítrofes, em que não se possa afirmar com plena convicção qual a resposta correta a determinada situação. Porém, mesmo nestes casos, e, sobretudo naqueles de mais simples interpretação, o juiz deve sempre seguir o que dizem as normas jurídicas[17] e não a sua vontade particular. Desta monta, ainda que não possamos mais crer em uma ideia de aplicação literal da lei (sem interpretações), deve, ainda assim, o magistrado, respeitar, quando de sua interpretação, os limites sintático-semânticos dos dispositivos legais.

Aplicando-se tais noções aos últimos episódios do caso Queiroz, tem-se que o requisito legal para a concessão do benefício de substituição da prisão preventiva por "prisão domiciliar" é o fato de o réu ser (ou estar) I- maior de 80 anos; II- extremamente debilitado por motivo de doença grave; III- imprescindível [que ele vá para casa] aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; IV- gestante; V- mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos; VI- homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos.[18]

Para fins de que a aludida medida seja concedida, ainda se faz necessário, nos termos da lei, que haja "prova idônea dos requisitos" dispostos acima, sendo dever do juiz, expressamente determinado em lei, exigir a sua apresentação.[19]

Pois bem... no caso Queiroz, não consta que o mesmo seja maior de 80 anos, nem que esteja grávido ou que tenha filho(a) menor de 12 anos. Neste sentido, o MM Magistrado que julgou o pedido de substituição de sua prisão preventiva pela domiciliar fundamentou sua decisão procedente no fato de que o nosso laranjinha está com câncer.

Ocorre, todavia, meus caros, que a lei não diz expressamente algo como "se está com câncer, então pode ir para casa". Assim, é de se concluir que estar com câncer, pura e simplesmente, não é elemento suficiente para autorizar a aludida alteração. Como o próprio dispositivo legal dispõe, é necessário que se comprove, por meios idôneos, que o réu não apenas sofre de determinada patologia, mas que esta o mantém em estado de extrema debilitação.[20]

Ora, pois... voltemos à questão da interpretação e seus limites... Para tanto, me valho de uma metáfora para melhor explicar esta questão:

com efeito, se nos perguntassem com quantos grãos de areia se faz uma duna, talvez não soubéssemos responder com exatidão. Talvez nos arriscássemos a dizer que um quintilhão de grãos já possa ser considerado um médão[21]. Acaso nos perguntassem, porém, se fosse retirado apenas um grão desta quantidade, se ainda teríamos uma duna, a resposta talvez fosse sim. E isso até o ponto onde chegássemos naqueles casos em que já não sabemos mais se estamos diante de uma duna ou de apenas um amontoado de areia. Com efeito, existem casos, nesta situação - e existirão em praticamente todas as outras, no concernente à interpretação - em que não se saberá, ao certo, com plena certeza, o limite máximo e mínimo para que determinado objeto (físico ou metafísico) possa ser considerado desta ou daquela maneira. O que ocorre, porém, é que, primeiro: o fato de haver contextos de interpretação incerta não nos isenta de buscar a melhor interpretação e; segundo: existem conjunturas que não nos deixam dúvidas.


Neste sentido, se, por um lado, não podemos e/ou somente com bastante dificuldade e incerteza possamos dizer com quantos grãos de areia se faz uma duna, por outro, sabemos e somos capazes de identificar prontamente os casos em que estamos, de fato, diante de uma duna ou diante de apenas um punhado de areia. Ninguém vai à praia e, antes de afirmar que vê dunas, passa a contar os grãos que enxerga. Normalmente, quando vamos a estes ambientes, de pronto já identificamos aquelas estruturas arenosas como dunas.

Assim também no direito... se há casos limítrofes (análogos ao de se medir a quantidade exata de grãos de areia necessários e suficientes para se constituir uma duna) onde a interpretação é complexa, trabalhosa e incerta, há também casos em que olhamos para uma conjuntura e de pronto somos forçados a reconhecer que estamos diante de tal ou tal situação (assim como quem vai a praia e desde logo sabe que aquilo que vê são de fato dunas, a despeito de não se poder dizer exatamente com quantos grãos ela se faz).

Aplicando-se, pois, tal teoria ao caso do Queiroz, temos que o dispositivo legal aplicável dispõe que, para a concessão de prisão domiciliar é necessário que o réu esteja sofrendo de doença grave, e que a mesma o esteja deixando extremamente debilitado.[22] Ora, pois... é deveras complexo auferirmos o que efetivamente pode ser considerado por "estar extremamente debilitado". Talvez não consigamos, com efeito, descrever as necessárias e suficientes características que uma pessoa deve ter para ser considerada como tal. O ponto, porém, é: existem casos que não nos deixam dúvidas!

Assim, o Queiroz, muito embora padeça, de fato, de câncer - que é deveras uma doença grave - esteve, durante todo seu tempo de refúgio, consumindo cerveja e fazendo churrascadas com amigos e mulheres na casa do advogado.[23]


Desta monta, se não sabemos, por uma parte, o que exatamente configura uma "extrema debilitação", somos obrigados a reconhecer, por outra, que alguém que tem feito e comido churrasco, e bebido cerveja, definitivamente não se encontra em tal estágio de patologia.

Neste sentido, se o Queiroz, na qualidade de alguém que tem feito e comido churrasco e bebido cerveja, muito embora seja paciente de câncer, não pode ser considerado como "extremamente debilitado", e, assim, definitivamente, o dispositivo legal aplicado pelo juiz ao seu caso não poderia ter sido aplicado.

Reforçamos: a lei exige, para a concessão da substituição da prisão preventiva por domiciliar, a existência de doença grave que esteja debilitando extremamente o réu. Não sou eu quem está dizendo isso. É a própria lei![24] E esta mesma lei ainda exige que o juiz não apenas considere tal fato, mas ainda faça com que se apresente prova idônea do mesmo.[25]


A prova idônea de que o Queiroz está extremamente debilitado nunca veio aos autos. Ao contrário, o que temos em todos os principais telejornais é que o mesmo, até então, "churrasqueava" com amigos e mulheres - não sem uma cervejinha para acompanhar.

Assim, como dissemos: se algum dia se percebeu que nem sempre temos casos de tão fácil compreensão - permitindo-se, aos juízes, que se movimentem entre as balizas de um texto legal - o ponto é: não podem, os mesmos, por eventual presunção de que os textos são vagos e plurívocos, desistir de sua tarefa de interpretá-los corretamente, respeitando (ao menos) os limites textuais de seu objeto de interpretação.

Ou isso, ou (permitam-me o trocadilho:) seremos todos engolidos pelas "areais movediças" da discricionariedade (despótica) judicial.



Post Scriptum:
A mulher do laranja, o que é?

Resposta: foragida que também não poderia ter substituído a prisão preventiva por prisão domiciliar.

Até à próxima!

Sobre a coluna

A coluna Homo Juris é publicada sempre às quartas-feiras.

[1]Os últimos episódios do caso Queiroz podem ser constatados através das matérias jornalísticas veiculadas à época. Se você vive em outro planeta, chegou agora por aqui e não sabe nada do que aconteceu, leia a reportagem do link a seguir antes de continuar a leitura: < https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2020-07/presidente-do-stj-concede-prisao-domiciliar-fabricio-queiroz>

[2]Assim postulou Platão, em sua mais célebre obra "A República": "chamo aqui de servidores da lei aqueles que ordinariamente são chamados de governantes, não por amor a novas denominações, mas porque sustento que desta qualidade dependa sobretudo a salvação ou a ruína da cidade. De fato, onde a lei está submetida aos governantes e carece de autoridade, vejo pronta a ruína da cidade; onde, ao contrário, a lei é senhora dos governantes e os governantes seus escravos vejo a salvação da cidade e a acumulação de todos os bens que os deuses costumam conceder às cidades. PLATÃO apud Norberto Bobbio. O Futuro da Democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 14ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017, p. 235.

[3]Aristóteles, de modo similar, também assim determina: aquilo que não está sujeito à influência das paixões é melhor que aquilo em que elas existem congenitamente; as leis não estão sujeitas a tal influência, mas toda alma humana necessariamente está. ARISTÓTELES. Política. Tradução de Mário de Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, 1286 B, p. 112.

[4]Cf. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Tradução e notas de Márico Pugliesi et al. São Paulo: Ícone, 2006, p. 29.

[5]É da senda de autores como Jean-Jaques Rousseau a ideia de que o poder estatal deve pertencer ao povo. Para Rousseau, “o homem [também] nasce livre”, sendo o abandono de tal liberdade para a formação de um Estado justificado pela preservação de seu estado (livre) de natureza, dado que pressupõe ser impossível garanti-la por muito tempo apenas pelo uso das próprias forças de cada indivíduo.11 Assim é que, desejando preservar, sobretudo, a igualdade e suas consequentes derivações (como a liberdade), os homens firmaram entre si um pacto social (Estado e Direito) pelo qual, ao invés de destruí-la, “substituem a desigualdade física [...] por uma igualdade moral e legítima.” Rousseau, Jean-Jaques, Do contrato social ou princípios do Direito Público. Tradução de Maria Constança Peres Pissarra, Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p. 13 a 32.

[6]Para um estudo aprofundado e crítico sobre o tema, ver: HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1977, p. 71 e ss.

[7]Para uma melhor compreensão do período conhecido como "Terror", veja-se: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Terror_(Revolu%C3%A7%C3%A3o_Francesa)>.

[8]Conforme pregava Montesquieu, as decisões judiciais deveriam (e se deveriam é porque cogita-se tal como possível) ser tão somente a reprodução fiel da lei. Apenas assim, imagina o teórico, seria possível garantir a segurança do direito. Para Beccaria, em semelhante diapasão, o juiz, frente a um delito, deveria tão somente aplicar um silogismo, dentre o qual a lei representaria a premissa maior, e o caso concreto, a premissa menor, resultando, como conclusão, a aplicação ou não da sanção legal. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Tradução e notas de Márico Pugliesi et al. São Paulo: Ícone, 2006, p. 40 e 41.

[9]Neste sentido, ver: STRECK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 34.

[10]Neste sentido, assim disserta Rafael Tomas de Oliveira: "As estratégias de legitimação da Lei Fundamental [outorgada pelos aliados no pós Segunda Guerra] perante os próprios alemães, e de política institucional num sentido mais amplo – que passava pela impressão que o novo regime causaria na opinião pública internacional – tiveram que enfrentar conflitos envolvendo casos concretos ocorridos ainda sob a égide do direito nazista. Pela tradição, este era um típico caso a ser resolvido pela aplicação do adágio latino tempus regit actum. Contudo, isso significaria dar vigência às leis nazistas em pleno restabelecimento da democracia e fundação de um novo Estado. (Re)fundação esta que implicava a afirmação de uma ruptura total com o regime anterior. Mas isso reivindicava uma tomada de decisão extra legem e, em última análise, até contra legem. Desse modo, para legitimar suas decisões e, ao mesmo tempo, não reafirmar as leis nazistas, o Tribunal passou a construir argumentos fundados em princípios axiológicos-materiais, que remetiam para fatores extra-legem de justificação da fundamentação de suas decisões. Afirmava-se, portanto, um direito distinto da lei. Mas não bastava isso, era preciso criar instrumentos que permitissem justificar, normativamente, tais decisões. Assim é que começaram a aparecer, nas decisões do Tribunal, argumentos que remetiam à “clausulas gerais”, “enunciados abertos” e, obviamente, 'princípios'." OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Dissertação de Mestrado em direito, UNISINOS, São Leopoldo, 2007, p. 195, disponível em < www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp042844.pdf> acesso em 31 de julho de 2017.

[11]Neste cenário é que passa a surgir, naquele pais, o que hoje se conhece por Jurisprudência dos Valores e a famosa “fórmula de Radbruch”, que, “...muito difundida na Alemanha pós-ditatorial, diz basicamente que, se a aplicação do direito positivo mostrar-se insuportavelmente injusta, ela há que ser corrigida para que a justiça possa prevalecer. Trata-se do início da Jurisprudência dos Valores, baseada na ideia de que o direito é a possibilidade (no sentido de tornar possível) da moral. É nesse ponto que a argumentação do direito passa a comportar princípios, que são elemento de completude do ordenamento.” SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das Decisões Judiciais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 133.

[12]Neste sentido, ver: 234903 RODRIGUES, Otavio Luiz Junior. A influência do BGB e da doutrina alemã no Direito Civil brasileiro do século XX. Disponível em: <http://www.direitocontemporaneo.com/wp-content/uploads/2014/01/A-Influ%C3%AAncia-do-BGB-e-da-Doutrina-Alem%C3%A3-no-Direito-Civil-Brasileiro-do-S%C3%A9culo-XX.pdf> Acesso em: 15/07/2020

[13]Por "democracia constitucional devemos entender não o poder soberano de uma maioria, mas, nas palavras de Luigi Ferrajoli, "o conjunto de limites impostos pelas constituições a todo poder, que postula em consequência uma concepção de democracia como sistema frágil e complexo de separação e equilíbrio entre poderes, de limites de forma e de substância a seu exercício, de garantia dos direitos fundamentais, de técnicas de controle e de reparação contra suas violações. Um sistema em que a regra da maioria e a do mercado valem apenas para aquela que podemos chamar de esfera do discricionário, circunscrita e condicionada pela esfera do que está limitado, constituída pelos direitos fundamentais de todos[...] - o pacto de convivência baseado na igualdade de direitos, o Estado social, mais que liberal, de direito [tradução livre]." FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. 2ª ed. Madrid: Editora Trotta, 2010, p. 47.

[14]De acordo com Lênio Streck, uma vez de fronte a nova ordem constitucional, juristas brasileiros, por carecerem de uma teoria constitucional adequada ao novo paradigma jurídico, viram-se impelidos a importar teorias alienígenas, o que, na compreensão do autor, fora feito de maneira acrítica, via aposta no protagonismo judicial. Para Lênio, o modelo constitucional a servir de espelho aos operadores pátrios fora o alemão, especialmente face a emblemática situação vivenciada pela Alemanha durante o regime nazista que, vale dizer, por mais atentatória aos direitos humanos que possa ter sido, muito pouco de ilegalidade representou. Assim, terminou-se por importar daquele país ao Brasil a chamada Jurisprudência dos Valores que, em largas linhas, ampliava os poderes do judiciário toda vez que necessária uma suavização das disposições legais. Sem atentar às diferenças contextuais existentes entre ambas as realidades, brasileira e germânica, teóricos brasileiros tomaram emprestado tão somente que “a Constituição é uma ordem concreta de valores, sendo o papel dos intérpretes o de encontrar e revelar esses interesses ou valores”, desapercebendo-se que, diferente do caso alemão, a primordial mazela brasileira circundava, em contrapartida, justamente no uso arbitrário do poder. A maneira pela qual decidiram importar a teoria alemã configura novo desalinho teórico, agora por intermédio de má assimilação da teoria da argumentação de Robert Alexy. Conforme Lênio, tal importação fora feita ignorando-se por completo os pressupostos formais relacionados pelo autor alemão, sugerindo como se todo seu constructo teórico culminasse em reles “operação em que se colocam os dois princípios em uma balança e se aponta para aquele que “pesa mais”. Desnecessário dizer, destarte, que a proposta de Alexy, em território brasileiro serviu tão somente como "álibe retórico" a (pseudo)fundamentar toda e qualquer decisão, servindo a ponderação como "porta aberta à discricionariedade" (lê-se, uso arbitrário do poder). Neste sentido, ver: STRECK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2014, pp. 57-60.

[15]O dever de fundamentação das decisões judiciais está estampado logo em nosso texto constitucional que a estabelece enquanto princípio judicial, em seus termos: Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; A fundamentação, contudo, é normalmente feita ao livre arbítrio do julgador. Não à toa falava-se até pouco tempo de decisões "livremente motivadas" nos Códigos de Processo Civil de 1939 e de 1973, felizmente revogados pelo código atual (L. 13.105/2015).

[16]Lênio Streck considera o sistema jurídico-normativo como composto por regras e princípios, sendo estes responsáveis não por abertura normativa a conceder liber(ali)dade ao magistrado para decidir conforme sua consciência, e/ou, dito de outra forma, “fazer justiça”, mas sim por permitirem, enquanto normativos, ao revés, um “fechamento interpretativo’ próprio da blindagem hermenêutica contra discricionarismos judiciais. (...) essa normatividade não é oriunda de uma operação semântica ficcional, como se dá com a teoria dos princípios de Alexy (...) Ao contrário, ela (...) retira seu conteúdo normativo de uma convivência intersubjetiva que emana vínculos existentes na moralidade política da comunidade. Nesta perspectiva (...) os princípios são vivenciados (“facticizados”) por aqueles que participam da comunidade política e que determinam a formação comum de uma sociedade.

[17]O conceito de norma jurídica é um tanto mais complexo e abrangente do que apenas os textos normativos dispostos em leis e etc. Autores como Friedrich Müller destacam que a norma a efetivamente solucionar os casos jurídicos se perfaz em um amalgama de seus "dados de entrada" ou "inputs" normativos, quais sejam, os textos e o contexto. Conforme disserta Schmitz, “é a facticidade do caso que determina a visão que o intérprete terá do enunciado textual, e que provocará uma influência desse texto novamente sobre facticidade, de maneira circular e contínua.” Assim, não poderá haver interpretação abstrata do texto normativo, de sorte a possibilitar sua independência interpretativa que, por sua vez, pareceria suscitar a hipótese de suficiência textual em determinados casos. Texto e fatos compõe o mesmo corpo normativo que dará solução aos casos concretos somente através de necessário e inafastável processo interpretativo de um relativamente ao outro, a ser realizado em todos os casos, como forma única de união de ambos os elementos normativos. Arriscamo-nos a dizer: a norma só é possível a partir da interpretação conjunta de seus elementos.” SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das Decisões Judiciais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 111.

[18]O vigente Código de Processo Penal brasileiro dispõe expressamente: "Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: I - maior de 80 (oitenta) anos; II - extremamente debilitado por motivo de doença grave; III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; IV - gestante; V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos; VI - homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos."

[19]Conforme recém mencionado dispositivo legal: "Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo."

[20]Cf. dispositivo legal recém mencionado.

[21]Conforme dicionário Michaelis de língua portuguesa, "Monte de areia ao longo da costa; camarção, duna, medo". < http://michaelis.uol.com.br/busca?id=13KZY>.

[22]Ver nota 18.

[23]Conforme notícia veiculada pelo Jornal O Globo. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/brasil/a-doce-vida-de-fabricio-queiroz-em-atibaia-bola-cerveja-broncas-da-mulher-1-24489845>.

[24]Ver nota 18.

[25]Ver nota 19.
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Guilherme Azevedo

Advogado e Filósofo, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) com dupla titulação em Estudos Políticos pela Universidad de Caldas/Colômbia.

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