A julgar pelo título, pode parecer que este que vos fala tenha perdido o "timing" do texto, afinal, frases como esta estampada em epígrafe foram ditas já há alguns dias atrás (o que, neste universo acelerado de hoje, é deveras obsoleto).


O assunto que subjaz as aludidas palavras não é, contudo, antigo, ao menos não no sentido de que já não faça mais parte do presente em que vivemos. Ao contrário. Tal espécie de situação é cotidiano em nosso país e, quiçá, no mundo. Assim, proponho-me a analisá-lo neste texto.



Pois bem... segundo veiculado pela mídia, foi o caso de uma pessoa ter sido chamada de 'cidadão', pelo oficial que lhe abordara e, respondendo a isso, proferiu os aludidos termos: "cidadão, não, engenheiro civil", disse.

Assistindo ao vídeo em que este fato ocorre, me peguei pensando: vale mesmo ser cidadão?

O que ser isso e em que medida isso nos difere?

Pois bem... genericamente falando, costuma-se dizer, no jargão popular, que se alguém é cidadão, o é nacionalmente, ou seja, é cidadão brasileiro, é cidadão italiano e/ou, ainda, "possui dupla cidadania".

Assim, seja lá o que se queira dizer com o termo "cidadania", refere-se, ela, ao país ao qual este ou aquele cidadão se vincula (por nascimento ou naturalização).

Aos cidadãos, diz-se, é garantida toda sorte de direitos humanos, como direito a vida, à liberdade de expressão e de crença, etc.

Perceba-se, porém, que tais garantias concedidas aos cidadãos já estão elencadas no rol daqueles direitos normalmente reconhecidos a toda e qualquer pessoa, justamente enquanto direitos universais das pessoas humanas.

Pois se assim o é, então o que se quer dizer quando se diz "cidadão"? O mesmo que "pessoa humana"? Creio que não, pois, fosse o caso, não precisaríamos de duas expressões para nomear a mesma coisa. Ademais, não se costuma falar de pessoa italiana, ou alemã, como convencionalmente se refere ao tratar-se sobre cidadania.

Neste sentido, parece-me que a ideia de cidadania é como um rótulo das pessoas, ou seja, um pedigree, algo do tipo "lulu da Pomerânia", cidadão do brasil, cidadão alemão... todos são animais, igualmente... mas "uns são mais iguais que outros", diria Orwell.

Assim posta, tal nomenclatura parece apontar à uma diferenciação das pessoas quanto à sua procedência. Parece também denotar, contudo, não apenas "de onde a pessoa veio", mas, ao revés, "a quem ela pode e deve reclamar seus direitos". Assim, os cidadãos brasileiros são de responsabilidade do Brasil... Os alemães da Alemanha e assim por diante, estou certo?

Pois se assim o é, caro leitor ou leitora, então resulta que a cidadania é a grande tirania do século. Explico.

Com o advento do Estado moderno, passou a vigorar, em solo Europeu, a noção de que as normas jurídicas, materializadas nos códigos, não necessitavam de interpretação, posto que, à época, o uso das técnicas hermenêuticas era visto como verdadeiro álibi ao abuso de poder, praticado pelos magistrados. Naquele contexto, o ideal era, com efeito, afastar toda e qualquer hipótese de uso despótico de poder. Assim, imaginou-se, que, com o uso puro da razão, se pudesse realizar um sistema plenamente imparcial de regras de convívio a serem seguidas pelos "cidadãos". Assim, 'cidadão', à época, queria justamente indicar isso: sujeito que se submete a este regime, devendo cumprimento a tais normas, sobretudo porque as mesmas espelham nada senão a materialização de seus direitos naturais, posto que advindos da própria racionalidade humana.

Não à toa, a primeira norma (pretensamente) internacional destinada a reconhecer os direitos humanos de maneira universal fora editada ainda em 1789.


Bem... este ideal não deu muito certo naquele período, sobretudo ao longo do que se conhece por Terror, nos finais da Revolução Francesa, sendo, os direitos das pessoas, positivados, em uma lei única, lê-se, num código, somente a partir do período dominado por Napoleão, que, por meio de seu famigerado "Código Napoleônico" instituiu, finalmente, as regras que deveriam valer, de maneira geral, sobre o território dominado por si.

Muito embora Napoleão fosse avesso aos ideais revolucionários que precederam a sua assunção de poder, os intérpretes de seu código o interpretaram, contudo, à maneira da revolução, tendo concebido que o mesmo não deveria ser interpretado pelos juízes, pois não são os magistrados os representantes do poder legitimado para fazer leis e, assim, qualquer interpretação poderia incutir em invasão dos poderes do legislador supremo.


Ocorre, contudo, que este sistema de vedação ao poder/dever de interpretar as leis demonstrou-se, ao longo dos tempos, frouxo e desgastado, sobretudo com a constante aceleração dos negócios havidos em seu meio social.

Com isso, passou-se a conceder certa maleabilidade ao judiciário para que este pudesse, sempre que necessário e possível, realizar certa interpretação das leis, valendo-se, por exemplo, de analogias, para solucionar os casos postos diante de si.

Esta liberdade concedida de maneira limitada aos juízes não fora contudo suficiente para solucionar os problemas das sociedades. Um grande exemplo e, ademais, verdadeiro marco histórico de tal questão fora então a Segunda Guerra Mundial. Como é de conhecimento geral, o regime Nazi-Fascista havido na Alemanha e na Itália da primeira metade do século passado foi o grande responsável pelas incontáveis mortes e sofrimentos de seres humanos que viviam naquele espaço e tempo.

Os horrores praticados na segunda Guerra fizeram então com que as sociedades despertassem de seu anseio pela não interpretação das leis, para perceber que, sendo ela impossibilitada, poderia ser que o uso arbitrário de poder adviesse do próprio legislativo, o que também não era desejável.


Assim, passou-se a conceber que os juízes deveriam, com efeito, aplicar as leis que tem de aplicar, porém, que estariam agora autorizados a não aplicá-la toda vez que a mesma desrespeitasse os direitos humanos. Não por outra razão, adveio nova declaração, agora denominada "Declaração Universal dos Direitos Humanos", em 1948, após o término da segunda guerra mundial.


Este novo entendimento acerca do papel do juiz faz transparecer que o Direito não é feito apenas de normas positivadas em textos legais, mas que, ao revés, deve, o mesmo, conceber os direitos naturalmente concedidos a qualquer ser humano. Neste sentido, o juiz poderia agora deixar de aplicar determinado dispositivo legal uma vez que este contrariasse os princípios relativos aos direitos das pessoas.


Neste ínterim, quanto à Declaração Universal de 1948, a mesma deve ser compreendida como instrumento destinado a justamente isso: declarar os diretos humanos. Foi posta como declaração justamente para salientar que tais direitos não são criados por este ou aquele instrumento legal, mas, ao revés, existem por si, desde sempre, devendo os Estados apenas "declará-las". Se tais direitos são implícitos à própria condição humana, é natural, outrossim, que seja declarada de maneira universal, ou seja, deve valer para todos que compartilham desta condição. É neste sentido que temos: "Declaração Universal dos Direitos Humanos".

Feitas tais considerações acerca dos direitos humanos, tem-se, portanto, que os mesmos são, como já dito, inerentes à nossa própria existência. Em suma, nasceu ser humano, tem direitos humanos, devendo os Estados (e os demais sujeitos do universo) respeitá-los.

Tal argumentação fora o que, inclusive, justificou a criação do chamado Tribunal Penal Internacional de Haia, que visa justamente punir agentes políticos que hajam infringido os direitos humanos das pessoas, mesmo que isso não implicasse em infração aos direitos positivados nos sistemas jurídicos de seu país. Fora com tal fundamento, inclusive, que se permitiu, em Nuremberg, que o oficial nazista, Adolf Eichmann, haja sido condenado à pena de morte, não obstante tenha apenas cumprido a lei de seu país (Alemanha nazista).


Retornando ao caso efetivamente em questão, tem-se que a nossa vigente Constituição Federal fora promulgada em 1988, diga-se: 40 anos após a promulgação da última declaração universal. Opera, todavia, com termos como 'cidadão' ao referir-se aos que por aqui vivem. Pergunta-se: por que?

Não teria sido mais fácil dizer simplesmente "pessoa humana"? Mais do que isso: se é o caso de 'cidadão' significar o mesmo que 'ser humano' então porque a nossa Carta faz referência a ambas as expressões como princípios diversos que devem nortear nossa nação?

Reforço: a ideia de cidadania fora posta nas legislações de cada país com este intuito: separar o joio do trigo.

Brasileiro é responsabilidade do Brasil, Alemão é responsabilidade da Alemanha...

Ocorre que, assim materializada, a cidadania termina por justamente infringir os direitos dos seres humanos, na medida em que, se há seres humanos e há cidadãos, resulta que alguns daqueles não são estes. As balizas que a cidadania impõe entre os seres humanos mostra-se mais nítida quando especificamos o 'tipo' de cidadão que estamos falando, ou seja, cidadão brasileiro... cidadão italiano.

Em uma análise superficial podemos concordar com esta ideia. Ou seja, eu cuido dos meus e tu cuida dos teus, certo? Errado!

Como já dito, no direito contemporâneo não mais consideramos os sistemas jurídicos como reles conjunto de regras escritas. São, ao revés, complexos de normas advindas dos textos legais mas também e especialmente dos princípios formadores do mesmo, tendo especial destaque aqueles atinentes à nossa própria condição, de seres humanos.

Os direitos humanos, como já vimos, são "universais", lê-se, de todos, sem qualquer distinção. Ademais, são intrínsecos, prescindindo, portanto, de positivação (não à toa foram apenas declarados, antes que criados, pelas normas internacionais).

Pois se assim o são, limitar o seu exercício a um grupo de pessoas que nasceu neste ou naquele território, colocando-lhes o rótulo de 'cidadão', é, em verdade, desprezar os tão caros direitos humanos.

Ora pois... conforme as declarações, de que o Brasil é, inclusive, signatário, os direitos humanos existem por si. Assim, não há necessidade de escrevê-los nesta ou naquela lei para que passem a valer.

Tendo, porém, escrito a palavra "cidadão" em seus sistemas legais, os países que assim o fizeram (e é a imensa maioria, senão a totalidade deles) estão em verdade dando o recado: aqui respeitamos os direitos humanos, porém só até onde a nacionalidade bater. Em suma, direitos humanos para humanos cidadãos!

Como talvez já se possa perceber, é nada mais do que o brocado conservador que diz "direitos humanos para humanos direitos" em sua versão internacional!


Eis porque reforço: a cidadania, em verdade, é um véu de castidade que os Estados colocam sobre si para dizerem-se protetores daqueles que nasceram e/ou adquiriram nacionalidade em seu território, mas que, na verdade, implica em impor limites aos direitos já anteriormente reconhecidos a todos os demais humanos que aí estão!

Pode parecer absurda esta análise. Um leitor (ou leitora) menos informado poderia me dizer que não é este o caso. Que, ao contrário, os estrangeiros que aqui estão são muito bem tratados e que, inclusive, é a eles garantida toda sorte de direitos humanos de que fazem jus.

Essa impressão desconsidera, todavia, as crises migratórias que tem havido em todo o planeta. Quiçá no Brasil isso não possa ser visto com tanta nitidez, mas... o que dizer das questões fronteiriças entre Estados Unidos e México? Cogita-se (e até onde se saber será feita) construção de um muro!!! O que falar sobre o que a Grécia tem feito com os refugiados sírios, ao abandoná-los em alto mar?


Não são todos países signatários dos direitos humanos? Então por que agem assim? Respondo: encontram na sua cidadania o limite para (des)respeitá-los.


Repito: a tão celebrada "cidadania" é, em verdade, o último resquício da opressão institucionalizada, na medida em que implica em verdadeira permissão para que países, signatários de declarações dos direitos humanos, sigam os infringindo quando se trata de estrangeiros (e pros próprios nativos, como se verá a seguir).

Poder-se-ia sustentar que os países que negam auxílio a seres humanos de outros países não o fazem por crueldade e/ou qualquer espécie de nacionalismo, mas porque temem, de fato, a total falência de seu sistema econômico acaso tenham de recebê-los.

Aceito este argumento, sem questioná-lo, para dizer: a culpa disso também é da cidadania, pois, com efeito, acaso apenas um país preste-se a verdadeiramente respeitar os direitos humanos, em sua universalidade, é possível que o mesmo sofra diversas complicações. Poderia, porém, ser auxiliado pelos demais, mas aqui, a cidadania destes, lhes diria não.

Por fim... inúmeros absurdos são praticados em diversos países ao redor do mundo, onde o Estado simplesmente não respeita sequer os direitos de seus cidadãos. Internacionalmente, porém, o que se diz, por exemplo, das mulheres que tem seu clitóris arrancado na Nigéria?


Resposta: não são os meus cidadãos, logo, não é problema meu!


Veja-se, portanto, que a cidadania ocasiona malefícios interna e externamente e impõe óbices aos direitos mais caros de todos nós.

Para os que precisam ser socorridos de seus países, migrando para outros, e àqueles que desejam, em seu Estado, permanecer.

Para falarmos sobre as pessoas e seus direitos, já temos um termo e uma declaração.

Assim, chamar de 'cidadãos' a uma parcela de humanos é, em verdade, negar direitos aos demais.

É isto e somente isto que "cidadania" quer dizer.

Não nos deixemos envolver!

Enquanto não terminarmos com as barreiras das cidadanias, não poderemos falar em Direitos humanos, em seu caráter Universal.

Neste sentido, concluo:

Engenheiro Civil? Vá lá, mas...

Cidadão não! Ser Humano!


Sobre a coluna

A coluna Homo Juris é publicada sempre às quartas-feiras.
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Guilherme Azevedo

Advogado e Filósofo, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) com dupla titulação em Estudos Políticos pela Universidad de Caldas/Colômbia.

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1 comments so far,Add yours

  1. É Guilherme, este é um ponto pouco falado, dessa subversão excludente do que se diz cidadania e tu destrinchou brilhantemente, parabéns e que a mensagem possa ser compreendida, para que o próprio "cidadão", o próprio povo, faça valer seu direito, ao invés de esperar isso do Estado, no nosso caso, o Brasileiro.

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