"E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário."
Trecho do poema "Tabacaria" - Fernando Pessoa.

Prezados leitores, que eventualmente me acompanham por aqui ou que, interessados no mundo jurídico, hajam caído nesta página em razão da "propaganda temática" que faço com o nome da presente coluna, "Homo Juris"...

Peço escusas para hoje desmentir tudo que venho dizendo até então...

Como talvez alguns saibam (ou possam saber a partir de mera leitura de meu currículo, que disponibilizo aqui neste blog) eu sou advogado e filósofo, mestrando em direito e, com isso, (permitam-me a falta de modéstia) exímio pesquisador das ciências jurídicas e sociais. Assim, é de se esperar que, com efeito, eu tenha dedicado e ainda dedique longos tempos de minha vida no estudo (e na defesa e aplicação!) das normas jurídicas que existem por aí. Pois hoje venho aqui para dizer que estive errado.


Quando ainda em meu ingresso no curso de Direito, fui, sempre, acima de tudo, o defensor daquilo que cri ser o correto a fazer. Assim, na faculdade, busquei, acima de tudo, pautar minhas análises sempre no aspecto crítico das disposições legais, de sorte a, mais do que assimilá-las, tecer críticas aos seus postulados. Pois tendo a justiça como norte, deixe-me enamorar por dogmas republicanos, de sorte sonhar com eles, enquanto redentores de nossa tão sofrida condição.

Neste sonho, que durmo desde que entrei na faculdade até o presente instante, vieram a mim primeiramente a democracia, enquanto deusa da soberania popular, a garantir o pleno respeito à autonomia, de que faz jus a dignidade humana...[1]



Depois dela, o Estado de Direito, inicialmente enquanto pacto social, como acordo entre iguais, em pleno exercício de suas liberdades[2], novamente derivadas de nossa própria condição, de seres racionais e, portanto, autônomos...


Mais tarde como Monstro marinho[3] que, "domesticado", servia para garantir que não devorássemos uns aos outros e, assim, permitisse o pacífico, embora temeroso, convívio humano.



Por fim, ainda, como protetor dos fracos... como defensor dos mais vulneráveis, capaz de, incluso, restabelecer a igualdade das condições naturalmente desiguais, verdadeiro Messias em forma de tinta e papel.


Na sequência, ainda, a própria Justiça... ela... a Deusa da equidade... abraçada, por certo, ao Estado (ora monstro doméstico, ora navio pilotado pelo povo[4]), a lhe garantir efetividade, mas munida de garantias, advindas do livro mágico que trazia sempre por debaixo do braço, com o nome de Constituição.


Sobre o despertar deste sonho, eu lhes conto na sequência. Por ora, o que importar referir é que, como disse lá em cima, eu venho dormindo este sono jurídico e sonhando este sonho constitucional desde que entrei na faculdade. Assim, sempre que questionado acerca do que era o Direito, de pronto me referia ao mesmo conforme aquilo que sonhei (seja porque o sonho a mim me parecia melhor, seja porque sequer sabia que estava apenas sonhando).

O Direito? É um sistema de normas propostas pelo povo e para o povo, no intuito de garantir a efetividade dos anseios populares, respeitando sempre os direitos dos mais vulneráveis e de hipotéticas minorias, diria o eu sonhador.[5] O poder judiciário? O braço forte do Estado, dotado de poder, destinado a pôr fim a eventuais infrações dos sagrados preceitos de sua Deusa, a própria Justiça, enquanto entidade soberana, conhecedora do que é justo.

A vida prática, por óbvio, sempre se mostrou avessa a tais visões... Mas isso nunca foi um problema para mim. Talvez como, certa vez, quisera Platão, eu não nutria demasiada preocupação pelo mundo terreno. Estive sempre preocupado pelo das ideias, aquelas, do meu sonho. Por certo que, tal qual o filósofo liberto da caverna, senti-me eu, sempre, na incumbência de trazer meus companheiros de cárcere para fora... fazendo-lhes ver a luz do dia que se apresentava a mim naquele sonho que somente eu sonhei... Assim, não me importavam os fatos havidos na prática... juízes não respeitando as leis... deputados propondo leis inconstitucionais... Constituição não sendo cumprida... eram apenas sombras na parede, frente as quais não cabia contestar. Havia apenas de olharmos para a fonte de luz (inicialmente para a clareira, e, depois, para o próprio sol, enquanto verdade última, juridicamente materializada na Constituição) para compreendermos o que verdadeiramente era o Direito de nosso país.[6]



O Sol (que, em realidade, era de meu sonho) seria o que nos diria a verdade do sistema em que vivemos... A realidade, pois, teria tão somente de espelhá-lo, tanto quanto possível, para se fazer (e conhecer do) real.

Pois eis que caí da cama e acordei.

Explico.

Assisti a uma palestra esta semana. Trata-se de uma exposição do Professor Alysson Mascaro, catedrático da USP que escreve sobre uma análise crítica do Direito.[7] Sua análise é: O Estado e o Direito não estão aí para nos salvar. São eles que nos oprimem e permitem (e incluso legitimam e garantem) que as desigualdades sociais e as injustiças se materializem e se perpetuem.

Choque... Espanto... Distopia... Matrix...


Negação... Aceitação... Recuperação.

Na palestra do prof. Mascaro fica nítido que, com efeito, o Estado existe, em verdade, para garantir a existência e perpetuação das condições do status quo exploratório em que se vive, em razão do regime (capitalista) em que estamos inseridos. O Direito? Molda-se conforme as exigências do Capital. Daí vermos que tão logo as condições populares principiem a ver a luz do dia, o sistema é golpeado (e aqui me refiro sobretudo ao Golpeachment) pelas próprias ferramentas daquilo que um dia jurou nos proteger. "Não vai ter golpe", bradamos. Teve. "Não passarão!" Passaram. "Nenhum Direito a menos!", e cá estamos, com uma CLT que por si só, para além de estar sendo cada dia mais reduzida, falsamente legitima a exploração, sob o rótulo de direitos trabalhistas, enquanto a Previdência é também completamente destruída.

Como destaca o professor Mascaro, a classe jurídica era, há 200 anos, uma espécie de Estamento, assim se distanciando dos demais pelos locais exclusivos que frequentavam, bem como pela indumentária e o palavreado específico e particular que utilizavam, assemelhando-se ao que são hoje os padres, por exemplo. Atualmente, essa separação não se dá mais pela distância física, mas em razão de distanciamento econômico, na medida em que, entre representantes do Ministério Público e do Judiciário, temos proventos que giram em torno dos 30 aos mais de 100 mil reais por mês. Assim, vivendo em meio a pessoas desta classe, os representantes do poder judiciário nacional vivenciam e, portanto, são, a ideologia de tal classe econômica... E tal fato advém não apenas do efetivo exercício dos cargos que ocupam, mas desde a sua formação, afinal, pela maneira como hoje são postos em seus cargos, somente podem ingressar neles os que já advém de determinada classe social, capaz de lhes possibilitar o próprio sustento ao longo de anos de decoreba que, ao fim e ao cabo, lhes exigem esquecer o básico, como a empatia, por exemplo, para no concurso passar. Assim, não temos humanos no judiciário, mas psicopatas, como diz Mascaro.


Novamente segundo este autor, o nosso grande problema na atualidade é a dificuldade que temos de falar contra as estruturas que sustentam o Capital. Assim, com efeito, até mesmo o maior dos progressistas não raro vislumbra materializar ideais como o de justiça por meio do Direito, conquanto possa moldá-lo de forma a garantir que os preceitos constitucionais sejam respeitados. Esquece-se, contudo, que o problema não está propriamente na quantidade de direitos que estão efetivamente sendo respeitados no presente. Está, antes, no viés qualitativo do Estado, enquanto entidade que simplesmente não foi feita para garantir-nos.

Assim, enquanto não falarmos diretamente contra a própria lógica (regime) de funcionamento das entidades a que aqui aludimos, será sempre ilusório crer na possibilidade de utilizarmo-las à nosso favor. Com efeito... não raro acreditamos que a Justiça Estatal, materializada no Poder Judiciário, nos salvará! O Direito, a Constituição nos protegerá de todo o mal, diz-se.

Esquecemos, porém, que tudo isso é paliativo e necessariamente ocorre entre limites bem definidos pelo próprio capital...
Como elucida Mascaro, o Judiciário não é a salvação, é, em verdade, a "forma específica da exploração do capitalismo". Assim, o Direito pode no máximo ser modulado, mas jamais perder sua essência, a de defender o Capital.

Em todos os mais de 100 países capitalistas que temos no mundo, temos, hoje, PELO Direito, milhões de pessoas presas em razão da apropriação de Capital, Capital este que não tinham, por estar nas mãos de poucos. Ora, pois... se o jogo inicia com poucos tendo muito, e muitos tendo pouco, e o Estado (tendo o Direito como fundamento), ao invés de reverter esta desigualdade inicial, é quem justamente garante que a mesma se mantenha, então, com efeito, nem Estado nem Direito estão do nosso lado, não importa o quanto consigamos domesticá-los ou cortar suas cabeças!


Se assim é que se mostram as estruturas jurídicas do Estado, então, com efeito, o sistema jurídico, em verdade, não merece a etimologia de "justiça" que tem, pois é, em verdade, é um sistema (por essência) INJUSTO, pois se presta a tão somente manter e assegurar justamente a exploração e dominação vigentes em sociedades cuja desigualdade é elemento essencial para seguir existindo.

Nas palavras do referido autor, temos de "quebrar a esperança de que 'amanhã o judiciário vai' " Não vai! E nem pode, pois é, em verdade, o próprio espaço em que o capital se legitima e garante a si próprio. Enquanto o regime do capitalismo viger, o Direito será seu braço forte e, portanto, não nos serve e, destarte, não é por ele que devemos lutar. O capitalismo, por excelência, é um regime exploratório. Está em sua natureza que, sobre sua sistemática, a imensa maioria seja oprimida por uma minoria. Assim, não há como pensá-lo, nem a ele e nem às estruturas postas a seu serviço (judiciário e legislativo, pressupostamente democrático) como passíveis de se salvar, a ponto de, colocadas as devidas amarras, garantir sejam os direitos de todos finalmente respeitados. É como na fábula do Sapo e do Escorpião, onde o primeiro resolve dar uma "carona" ao segundo sob a promessa de que este não lhe aferroaria. Sendo pois, aquele, surpreendido com um ferrão, recebe como resposta que não poderia esperar diferente, pois é isto que fazem os escorpiões enquanto tais. Pois assim mesmo os Estados e o próprio Direito para com o povo que é oprimido pelo Capital.


O Capital reina soberano sob a proteção do judiciário (e com ele a força policial), tendo sido, inclusive, o seu criador, justamente para este fim.

Assim, a crítica a ser feita às mazelas que ainda sofremos não pode ser uma crítica ao Estado em razão de o mesmo não cumprir com as promessas de suas cartas constitucionais. Há, antes, que se questionar, a sua própria existência e, com isso, as razões pelas quais não é possível furar a barreira de qualquer tentativa de governo efetivamente de esquerda. Sim... vejamos que nunca estivemos efetivamente próximos de qualquer coisa como Socialismo ou Comunismo. Os governos que mais se aproximaram disso foram violentamente depostos. Mascaro cita exemplos: Vargas se suicida... Jango renuncia... Lula vai preso... Dilma é impichada...


Com efeito... o sistema diz-se protetor de nossos direitos, mas, ao fim, é, acima de tudo, um grande teto, frente ao qual não nos é dado ultrapassar. Somente a partir desta percepção é que podemos perceber que o sistema existe, em verdade, não para nos assegurar direitos, mas, sim, para manter as relações exploratórias do Capital e simplesmente impossibilitar que ultrapassemos as barreiras da exploração.

Mais uma vez, em analogia similar ao do professor: acreditar que, por meio do Direito e das instituições deste Estado, poderemos, algum dia, chegar em um lugar desejável, é como acreditar que o Buzz Lightyear poderá algum dia voar, apenas porque, por vezes, montado em um carro de controle remoto, sobe em uma rampa e é lançado ao ar, lá permanecendo por alguns instantes até cair.

"Isso não é voar, é cair com estilo" diria o xerife Wood, para os entendedores...

Assim também os esforços das Esquerdas, por se valerem dos mecanismos estatais para lograr seus objetivos políticos e sociais...


Não é voo. É uma queda, que, muito embora nos mantenha no ar por alguns segundos, implica, ainda assim, em cair, mais que voar.

Se se pensa que as instituições são neutras e que, neste caso, bem podem ser administradas pela Esquerda e assim instituírem um Estado verdadeiramente progressista, que pensemos, então, que os mesmos, quando estão sob o domínio da Direita, são capazes de fazer toda sorte de absurdos, liberais e, incluso, desumanos, sem qualquer limitação. O contrário, todavia, não é real. Enquanto a Direita, ao assumir o poder, logra conquistar seus objetivos (por mais absurdos que pareçam, desde reformas trabalhistas contra os trabalhadores até regimes nazifascistas), a esquerda vai apenas até certo ponto, sempre batendo no teto do Capital.

Sustenta-se que a democracia poderá nos salvar, conquanto elejamos, no próximo procedimento eleitoral, alguém verdadeiramente "do nosso lado". A pergunta é: como, se o próprio sistema não foi feito para isso? Tal qual diz o professor, temos absolutamente todos os aparelhos ideológicos, como as mídias (ressalvadas raríssimas e pouco expressivas exceções) dominados pela ideologia do Capital. Assim, absolutamente tudo que se consome, pelo povo, é contra a Esquerda e os ideias progressistas. Postas tais conjunturas, como se espera que, assim, a democracia possa nos salvar?

Ora, pois... se, por um lado, a democracia é feita pelo povo, o povo, por outro, é feito pela ideologia que consome. A ideologia que o povo consome é, contudo, fornecida pelos aparelhos ideológicos do Estado, que, por sua vez, são dominados pelo Capital. Assim, a própria democracia (enquanto poder do povo) é, em verdade, nossa principal inimiga!

Com efeito... se pudesse resumir a uma só cena o meu despertar, eu me referiria ao seguinte: uma imagem em que a tão celebrada Democracia, o Estado (dito "de Direito"), a Constituição e a Justiça postam-se como grandes criaturas, prontas para qualquer embate, cujo olhar menos atento, porém, não permite perceber que são, em verdade, bonecos do grande e habilidoso ventrículo chamado Capital.



Em resumo... A luta da esquerda não pode ser PELO Estado e/ou através do Direito, mas CONTRA ambos! Isso até quando se possa reverter a própria lógica de funcionamento das relações de produção que ora vigem em nossos contextos sociais, em nível global. Antes disso... somente o povo pode servir e lutar pelo próprio povo, e a luta do povo, pelo povo, com as próprias mãos, não é jurídica... é REVOLUÇÃO!


P.S.: Ou isso, ou seguiremos nesta... ao invés de voar, no máximo cair... (ainda que) com estilo!



P.S.2: Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos (ainda que afastados)!!!


Sobre a coluna

A coluna Homo Juris é publicada sempre às quartas-feiras.


[1]Um dos precursores da ideia de Dignidade da pessoa humana foi Immanuel Kant. Em "Fundamentação da Metafísica dos Costumes", Kant busca demonstrar a existência de um princípio ético capaz de regular a priori as condutas humanas e/ou ao menos julgá-las como corretas ou não. Para tanto, o autor sustenta inicialmente que nada pode ser considerado bom ou mau "sem limitações", senão a vontade do agente.[1] Neste ínterim, exemplifica determinadas ações humanas e/ou mesmo aspirações que podem servir tanto ao que é hodiernamente considerado bom como ao seu contrário. Assim, se apenas a (boa) vontade possui valor moral, um conjunto de regras e/ou mesmo princípios morais que se pretenda edificar, só poderá ser erigido a partir da determinação desta vontade. Esta propriedade, segundo Kant, não pode, todavia, ser tida como boa pelas suas consequências, mas tão somente pela própria capacidade volitiva, em si mesma. Para advogar por este posicionamento, o filósofo argumenta, inicialmente, que, nos organismos vivos, não encontramos nenhuma de suas partes que não se destine a uma finalidade específica. Neste sentido, se possuímos razão, esta não poderá servir ao alcance da felicidade, posto que, com frequência, são justamente os dotados e habituados ao uso da razão que encontram-se mais distantes daquela. E se a razão não serve à felicidade - mais facilmente alcançável pelos nossos impulsos e/ou instintos naturais - então resta-nos concluir que a razão nos foi dada sobretudo para influenciar nossas inclinações, de sorte a que produza "vontade boa", não apenas como meio para alcance de outros fins, mas como intrinsecamente boa. 'Boa vontade', na concepção kantiana, consubstanciar-se-ia, por sua vez, naquela cujo único propulsor é o próprio dever. Este, de sua parte, deve advir de uma normatividade (lei) derivada da razão, posto que, conforme exposto acima, é esta a faculdade humana destinada a determinar tal regramento. A razão, como já dito, só poderá culminar num dever de valor moral intrínseco, posto que, se este dever estivesse relacionado a outros elementos - como às consequências - certamente a razão não seria necessária. Esta lei moral, como produto da racionalidade humana, de seu turno, deve possuir natureza universal, na medida em que advém não de interesses particulares, oriundos das múltiplas inclinações pessoais humanas, mas da razão, sendo esta uma faculdade compartilhada por todos. Assim, se tal lei possui caráter universal, um primeiro princípio de que desta constatação podemos, segundo Kant, derivar é: "devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal". O dever, porque advindo de princípios objetivos da racionalidade, chama-se "mandamento", sendo suas fórmulas os "imperativos". São categóricos, por sua vez, os imperativos que não guardam relações com a ação ou com as suas consequências. A "vontade boa", porém, não está obrigada a originar ações conforme a lei, mas, antes, apenas pela representação do bem. Assim, o dever, enquanto derivado de um imperativo categórico, não figura neste sistema ético como um balizador das condutas existente por si, de sorte a que nos restasse somente consultá-lo para avaliar como boas (ou más) as nossa ações, mas, antes, a "boa vontade" é que deve se confundir com a própria norma, pois, veja-se: a lei objetiva (enquanto modelo de conduta humana derivado da razão) existe apenas porque a razão assim a identificou como tal. E por ter assim identificado, não poderá ser outro senão este o padrão a ser seguido pela razão, quando da determinação das direções da vontade. De maneira ainda mais simplificada: se é a razão que erige a lei enquanto padrão de condutas humanas, pautando-se na ideia de 'o mais correto a fazer', não será outra a determinação da razão ao agir humano senão a mesma que esta identificou anteriormente como correta. Vale lembrar que estamos falando sobre uma razão isenta de inclinações. Para Kant, sem as inclinações, não há outro caminho a ser trilhado pela racionalidade senão aquele que a mesma identifica como correto a seguir. Com efeito, não faria sentido concluirmos que, a despeito de nossa razão ter identificado como correta determinada conduta, a mesma nos levasse, sem a influência de nossas inclinações, a caminho diverso do traçado por si própria. O autor adverte, todavia, que a vontade sempre serve a um fim. Por tal motivo, aquela dita "vontade boa" - porque derivada da razão - não poderá, pelas razões já explicitadas, deter como efeito desejado qualquer objetivo que possa servir tão somente como meio a outras finalidades. Assim, é necessário, para a perfectibilização da boa vontade, que haja alguma coisa que detenha valor intrínseco, a lhe servir como fim.[1] Para tanto, Kant propõe que o homem é este ser dotado de "fim em si mesmo", posto que, em seu entender, os seres racionais assim se distinguem por sua natureza, lê-se, algo que não pode ser empregado simplesmente como meio. A recém mencionada distinção, concedida aos seres racionais, se justifica, para o autor, na possibilidade que a razão representa aos humanos de participarem na "legislação universal", posto que destinados, por natureza, à liberdade de obedecer somente às leis que os mesmos determinam para si, e que, mediante uso da razão, podem derivar máximas universais.[1] À esta liberdade na determinação das próprias normas, Kant chama de autonomia (da vontade).[1] Neste ínterim, Kant diferencia os entes mundanos entre coisas, enquanto seres não dotados de fins próprios, possuindo preço e podendo, portanto, serem substituídos; e pessoas, enquanto seres dotados de dignidade, porque detentores de fins em si mesmos. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Lucimar A. Coghi Anselmi et. al. São Paulo: Martin Claret, 2009, passim.

[2]Para Rousseau, “o homem [também] nasce livre”, sendo o abandono de tal liberdade para a formação de um Estado justificado pela preservação de seu estado (livre) de natureza, dado que pressupõe ser impossível garanti-la por muito tempo apenas pelo uso das próprias forças de cada indivíduo. Assim é que, desejando preservar, sobretudo, a igualdade e suas consequentes derivações (como a liberdade), os homens firmaram entre si um pacto pelo qual, ao invés de destruí-la, “substituem a desigualdade física [...] por uma igualdade moral e legítima.” O pacto social servirá, por sua vez, para dar origem ao Estado que, por sua natureza contratual, deverá a todo instante objetivar o bem comum. Este objetivo, de seu turno, deverá ser ditado sempre pela vontade geral, que não pode ser confundida com a vontade de todos, posto que a primeira visa apenas o bem comum, enquanto a segunda olha tão somente para os interesses privados, representando apenas a “soma das vontades particulares.” Para o filósofo francês, o Estado existe tão somente para conservar a si mesmo e aos direitos de seus membros. Para tanto, seria necessário atribuir ao mesmo um “poder absoluto sobre todos os seus” que, dirigido pela já referida vontade geral, recebe o nome de “Poder Soberano”, sendo o próprio povo, o seu detentor. O Estado necessita ainda, todavia, de um Legislador, dado que a soberania não atingiria sozinha o seu fim se estivesse sujeita apenas às “leis da justiça”. Rousseau, Jean-Jaques, Do contrato social ou princípios do Direito Público. Tradução de Maria Constança Peres Pissarra, Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, passim.

[3]O monstro marinho "Leviatã" é alusão de que se vale Thomas Hobbes para fins de representar o que, em seu entendimento, seria o Estado. Assim, postulava que há, entre os homens, uma certa igualdade quanto às faculdades de espírito, dessa derivando uma igualdade de esperança em atingirmos os nossos próprios fins. Ocorre, todavia, que os fins são finitos e, destarte, não podem ser gozados por todos. Assim, uma vez que, não raro, costumemos desejar as mesmas coisas, tornamo-nos inimigos daqueles que desejam o mesmo que nós. Desta inimizade, surge, por conseguinte, a desconfiança, que gera, por sua vez, o ímpeto de nos anteciparmos aos ataques dos demais, o que, pra o autor, só poderia ser feito através da força. Segundo o filósofo, a origem de nossos conflitos está senão fixada em três principais causas, quais sejam, a competição, onde se visa o lucro, a desconfiança, onde se age em detrimento dos demais em nome da segurança e a glória, onde se almeja a (boa) reputação. Todas elas, para o autor, são buscadas pelo homem através da violência. Tal fato o leva a concluir que no “estado de natureza”, não é possível ao homem ter a segurança de viver todo o tempo que a natureza lhe permite viver, posto que, sem um poder capaz de manter a todos em temor respeitoso, estaríamos fadados, pelas razões supra, a uma “guerra de todos contra todos”. Uma vez que sobre os homens recaia naturalmente o instinto de preservação de si mesmo e sendo a guerra uma verdadeira ameaça a tal preservação, é consequência desta lei natural de autopreservação que o homem busque a paz. É natural, de outro modo, que a busca individual pela paz reste infrutífera (equivalendo-se a “oferecer-se como presa”), sendo, portanto, necessário senão que até essencial à busca pela paz, a anuência de todos os interessados em pactuar, entre si, a resignação conjunta e recíproca de cada qual, quanto ao seu direito a todas as coisas, “contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo.” À esta transferência mútua de direitos, Hobbes chama de contrato, sendo os pactos, aqueles acordos de vontades onde as partes criam mútuas e recíprocas obrigações e deveres entre si que se perpetuam no tempo e a realização se dá sempre no futuro. Somando-se, pois, os raciocínios de que seria forçoso aos humanos, de um lado, realizar entre si um pacto em que todos efetuem renúncias de seus direitos, de sorte a garantir a paz e afastar a “guerra de todos contra todos”; e de outro, instituir um poder capaz de manter a todos em respeito, forçando-os, por medo ou castigo, a cumprir com o pacto, Hobbes conclui pela necessidade de criação do que chama de República política, onde os homens concordem entre si em se submeterem a um homem ou a uma assembleia que, dotado(a) de poder soberano, possa usar a força e os recursos de todos da maneira que considerar conveniente para assegurar a paz e a defesa comuns”, sendo estas as suas justificativas e caminhos eficientes para o abandono ao estado de natureza. Hobbes, Thomas. Leviatã. Tradução João Paulo Monteiro, Maria Beatriz Nizza da Silva, Claudia Berliner. 3. ed. Brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2014, passim.
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Guilherme Azevedo

Advogado e Filósofo, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) com dupla titulação em Estudos Políticos pela Universidad de Caldas/Colômbia.

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